Ana Porfirio





Ai que prazer
não cumprir um dever.


Fernando Pessoa escreveu isto e hoje esta frase ecoa por mim, apetece-me fugir a todos os deveres impostos ou escolhidos, estou farta do país armado ao pingarelho, onde há crianças com fome e pessoas de mãos vazias, onde se abrem lojas de luxo, onde violadores pedófilos dão entrevistas em liberdade e os crimes cor de rosa choque com direitos a plumas e lantejoulas têm honras noticiosas e entrevistas de especialistas, entretanto há crimes iguais ou piores no Poço do Bispo ou em Massamá, mulheres que aparecem na urgência hospitalar, que até já é mais cara, com a desculpa triste de caíram do escadote, quando na realidade caíram nas malhas da violência doméstica com o seu conjunto de humilhações, tristezas, dores e nódoas negras no corpo e na alma, entretanto as comissões de inquérito aos negócios turvos e mal explicados acumulam-se no charco da normalidade, da banalidade, o desemprego é um mal necessário e a crise económica é uma espécie de virose que parece que se contagia além fronteiras, não sei se desta vez vem nas patas das galinhas ou nas notas da moeda única, entretanto discute-se o romance de cordel, jubila-se por se ter o melhor treinador do mundo, não que isso baixe os preços do combustível ou aumente as exportações, eu entretanto vou tentado mudar coisas práticas muito pequeninas, levanto-me com esta motivação que deve ser genética do “dever”, organizo mesas de voto e votos por correspondência, vedações a reparar, e vejo onde vou arranjar dinheiro para mais um vidro de uma escola, distribuo excedentes de produção alimentar da União Europeia, porque há fome, sim, existe no concreto, mas também existe este supérfluo comer, uma aberração por si só.
E, portanto, apetece-me ser absurdamente egoísta, demarcar-me por uma fração de tempo de tudo isto, não me preocupar absolutamente com nada mais, mesmo nada, apreciar apenas meia dúzia de prazeres egoístas e risonhos.

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