Do centurião do caçador, os asterismos possíveis

 





Cada vez que volto à janela, esta onde me debruço, me baixo e rebaixo para olhar o céu, estrelado ou nublado, onde ancoro o meu feixe de luz, num parque de estacionamento estelar, vejo milhentas janelas abertas para a luz, onde o símbolo das seguradoras arrisca petições a São Pedro.

Debruço-me, o fumo sai para o túnel do tempo, para a escuridão mansa, onde brilha aquele cinturão de estrelas de mãos dadas, a que chamam vulgarmente de três marias e a que, oficialmente, foram chamados nomes que pressagiam momentos, cujo epicentro não depende de nós, digo, dependem de nós, mas não enquanto força de tração, e sim, enquanto espetadores participantes, se nos permitimos dar o passo. Como a gaivota que alça o voo (Richard Bach), ou o melro que seduz os passarinhos, para lhes perceber o instinto vital. Do asterismo (aquela nuvem parece um escorpião), fazem jus à nomenclatura Alnitak, Alnilam e Mintaka. A constelação de Órion, o caçador. E foi hoje que li o artigo do caçador que se imiscuiu entre caçadores, para lhes impedir as matanças, tal como o polícia undercover que vai comprar heroína para descobrir o abrigo dos chacais. Isto não é poético, mas prima pela estratégia. Os pássaros usam os ventos laterais para voar à boleia. Eu faço o mesmo. 

O metal frio, à medida que faço mingar o braço, na parte de dentro, e crescer na parte de fora, sinto a frieza desse contacto e a lufada de ar fresco no rosto. E vejo, para além dos aviões, dos corredores e das estrelas que foram mapeadas pelos homens, figuras e contornos de rostos que vão caminhando, em dimensões desiguais, tão desiguais como eu e tu, ou o jovem que está do outro lado, naquele edifício iluminado de néon, aguardando o limite e a campainha do micro-ondas que lhe cozinha aquele hambúrguer, pizza, a sopinha de hortos do pingo doce, cujo pulso parece algo penalizado, com uma facha cinza lisa de primeiros socorros, que talvez tenha padecido de excesso de desporto, não como o meu braço que peca pela posição de desconforto, enquanto ele beberica o batido de claras, enquanto mapeia no telemóvel a rua onde ela mora, do outro lado do mundo, que do outro lado do mundo, ela estará a ser guardada por um vigilante, para bem longe de caçadores furtivos, enquanto vê uma manga coreana e espreita os vasos de gardénias, enquanto o porteiro do prédio assinala no visor da secretária alguma coisa e daqui posso ver a ambos, duas metades que se completam nas expectativas do outro, e vou desenhando aos meus cotovelos cortados pelo reto metal, duas almofadas para que possa demorar-me no percurso das estrelas, na figura do centurião que não conhece as três marias, nem aos três reis, nem quer saber quantas constelações nomeamos, quantas guerras iremos travar, quanto de nós é postiço e irreal ou submisso, sequer imortal. Passo a mão pelo braço dormente, picadas finas de alfinete, uma dor miúda a madurar na coluna, faço uma pausa no tédio e dou um trago no ópio, ócio, indo a reboque de uma outra constelação, de uma outra janela, de um voo peregrino, onde me espraiam os olhos, onde ao fechá-los, posso vê-lo, dando corda e procedência a este sonho antigo, da menina que cresceu e se esqueceu que tinha deixado de lado a materialização, do menino que perdido entre o jogo dos berlindes e a vida fajuta de bullying, se promete agarrar na cauda do cometa, que um dia vai ser grande e vai lembrar de tudo, sob a perspetiva das janelas, que esta é minha mas também de muitos outros, que os sonhos são diversos, mas no significado geral, todos tendem ao mesmo, a realização da adrenalina, de um neurotransmissor que se esqueceu da luz, da lanterna que perdeu bateria e bastará que uma pilha, uma lembrança, um segundo de existência, uma pessoa criança que segura o fósforo para ver uma última vez, nessa noite, o personagem sonhado de uma vida toda.

O caçador e a caça. Pediram-me um posfácio e foi em si mesmo, o evento, uma sincronicidade, eu caçador de sóis, a lembrar o Nuno Guerreiro que já é uma estrela que eu arrendo, hoje outra vez, Nuno, mas foi o Filipe que me enviou o email que começava assim: Novaes, onde andas Alma perdida, que nada se sabe de ti? Que preciso do posfácio para o meu 15º filho de letras. E eu, que já não me lembrava qual era o terceiro nem o quinto, nem o décimo, muito menos o décimo quarto, fui ao centurião e voltei ao email. O tema versava o mesmo. Esse caçador, que para ele é ele próprio, o predador de poemas e para mim o caçador é a caça, na perspetiva inversa, que devo ter-te perdido a doze, logo eu que sou de vinte e um, o inverso perfeito, só um avisado uraniano, aliás, um iluminado chega à luz pela escuridão, sempre o velho paradigma das dualidades, o mito do eterno retorno. Tropeço neste caçador e escrevo por encomenda o posfácio, que sou de compromissos e se digo que faço, então faço, só que é sempre em cima dos joelhos, sempre empurrado, salto da janela de um andar altíssimo, no parque do anjo haheuiah, da barriga de um sonho, para uma realidade aflita, a correr, que para gostar de mim, preciso me respeitar e para me respeitar, tenho que me exigir os mínimos e exijo. Por isso, cumpro. Arrematei o caçador (e rematei), mas o artista, que é sempre um buscador de perfeições, procura nos outros o em si mesmo, através do que lhe reflito no poema artesanal, uma luz que lhe diga que é ele que está ali, que o compreenderam, que lhe leram a alma e o identificaram, e não fica satisfeito que o outro lhe diga assim, de xofre, é isto, e adultera a sua composição, perguntando se a Novaes, a Guedes aceita a correção de um posfácio encomendado, e eu atiro-lhe com um: com certeza, veja-se como quiser, que eu vejo-o assim, cumpri a minha parte, a estética exigida pelo seu eu real só a si lho diz respeito. E para mim, esse caçador de p(r)osas, de rosas, de sedas, de onças, de feras, de esperas e de cometas cujo remetente ou destinatário não és tu, infelizmente, é ele, vermelho e rubro, encarnado é que não, para mim, dizia eu, está encerrado. E selo o email com um: sabeis quem sou, endereço e com os melhores cumprimentos, eu, a que cumpri acordo, vou estudar outro caçador, que és tu, o eterno caçador que vira caça fora do centurião, senhor da minha constelação, que rege o meu pulso, o meu ritmo cardíaco, o meu plexo solar, o meu intuito. Singelas intenções e intuições me guiam, se soubesses que os anjos me sopram acordes para as letras que compões e me criticam pela covardia de aceitar outro comando que não o meu. Vá pelos seus dedos. O céu possível. O enigma adensa-se. A minha paciência plastifica-se. 

A minha regente mira-me do céu. O co-regente mercúrio brinca e inicia o seu período de retrogradação. Volto ao ermita. Mas hoje vi o teu dorso banhado de espuma. Hoje vi-te chegar numa calça da twins, cinzenta-clara, dobrada no fundo, com os teus caracóis ao vento e uma sweat azul. Eras tu. Só não era hoje. O momento capturado. Cavalgavas nas ondas do meu oceano e eu recuava novamente no tempo. Não volto atrás. Vem aí uma tempestade e eu vou comprar uma termotebe. E para ti, vou comprar uns patins.




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