Cristina Guedes




Considerações sobre Natais consumistas e consumidores
(este texto - parece que fumei um ou bebi dois- é de um Natal de, pelo menos, 6 anos atrás, enfim e tão atual)
Morte, vá de rés
Ás vezes, acho que já senti tudo o que tinha para sentir. Que nada mais me pode dececionar ou alegrar. Não é um pensamento lógico ou sequer ilógico. É sensação. Porém, errada. Porque a vida continua a doer e depois da ferida, a sarar. E depois da crosta, a esquecer. Muitas vezes, acho que não sinto capacidade de me emocionar, de me virar do avesso, nem pelo homem e sequer pela natureza. E engano-me uma e outra vez, redondamente. Parece-me que depois de uns bons bofetões da vida - lá está o bode expiatório da vida com costas largas - sou uma colcha de remendos, que se vai abrir do lado oposto ao concertado. Seguramente, o Inverno contribui para estas sensações deprimentes e algo nostálgicas. O Natal idem. E mesmo não sendo católica, sou uma pessoa de bem que gosta da família e a vê diminuindo. Claro que a culpa (que nunca morre solteira) é da PDI, que tanto vai seletivando pessoas e órgãos operacionais com prazos limite. A lista vai sendo divulgada e eu vou-me sentindo acuada. Não sei se será o medo da minha vez - também tenho lá o meu nome, embora esteja e, sobretudo, invisível para mim. Alguém disse, já não sei quem mas aposto que um grande pensador receoso de estar errado, que a morte vai nos encostando à parede através dos que amamos e perdemos. Que vamos desaparecendo nas memórias que eles têm - tinham? - de nós. E que, quando só um ser houver que nos ame e que amemos, já nos sentiremos mais mortos do que vivos. No Natal, dou-me conta da imensa lista dos desaparecidos, uns pela pdi, outros pela pdv e outros tantos pela pda. Que importa de que forma se somem, porque se somem e, sumindo, levam partes essenciais de nós. Disse essenciais porque são essas que fazem falta para o corpo ter vontade de caminhar entre os destroços materiais. E a porra da nostalgia é tanta que vejo o rio que a personagem do Vai onde te leva o coração, a avó, descreve. Quase me afogo. E os destroços ou dejetos que o percorrem desde a nascente até à foz vão mendigando às margens amarras. Como se fossem âncoras que uma vez lançadas se fixam(sem) eternamente. Ah, eternamente combinava com os vestidos de flores da minha infância na perfeição! E quem sabe se influenciada por Wilhem Stenhammar - Serenate Op. 3 in F major - IV. Notturno, sugestão da Ecg ,que é o que oiço no momento, o poema de João Cabral de Melo Neto - Morte e vida Severina (que o Francisco Oliveira postou juntamente com uma foto de algumas campas de cemitério), se também contribuiu a Geografia de Felipe Juaristi postada pela Amélia, se Sófocles da Eli me segura pelo coração, mas sinto-me curvada por um peso. Que podia ser a do homem com uma dor de Paulo Leminski. 
O Natal acontece para as crianças, mas depois elas crescem e o Natal passa a constar como aquele quadro cristão da ceia sem mutações. Só que com mutações. Se todos os apóstolos fossem de carne e osso, e aquele quadro um momento da eternidade, ano após ano iria haver lugares vagos na mesa, de 13 passariam a 12, de 12 a 11, de 11 a 10 até se sumirem da ceia, como se nuca tivessem existido, exceto naquele momento, em que alguém ainda guardasse alguma memória de ter acontecido. O natal é a data de reconhecimento de sobreviventes, de balanço dos destroços. E papéis de celofane coloridos, e fitas de todas as texturas, laçarotes que enfeitam a ilusão de bem-querê-los que os quero sempre e mais do que os homenageio. Que adoecem e partem sem pré-aviso, que se nos escapam sem notificações, nem ralhetes e nem beijos de despedida. E alguns morrem, partindo e outros partem, morrendo e para cada um deles uma dor aguda - tomara seja a dor que nos arranca a respiração - a de revolta, a de raiva pela falta de respeito ou de consideração que a morte tem com eles e connosco. Pode ser só uma dor egoísta, a de não sabermos existir sem espectadores, sem holofotes, sem aplausos, sem palco, sem a anima dos outros a lamber-nos o ego. Mas é um amo-te e deixa-me partir, amo-te mas tem que ser, amo-te mas já não aguento a vida em dose diária. Só que tudo em surdina. Sem dizer nada. Sem palavras. Sem equilíbrios. 
E deve ser porque me sinto menos revoltada depois das palavras escritas aqui - elas ficam aqui, nunca mais lhes toco, não terão mais o poder de ficar vivas em mim mas aqui - que anuncio um pedido online à morte, assim em jeito de aviso, para que no próximo natal se não lembre de surgir do nada para me roubar mais almas e sítios, aviso-a (pedindo, quase mendigando, de joelhos, urgindo deferimento, estás a ver?)que, quando tiveres que vir, não venhas de preto. Olha o branco que é tão mais paz, e deve ficar-te bem a cor, vem de branco, sem máculas e nem olheiras de penar, e faz-te anunciar. Com vidas de antecedências. Não uses relógio humano, que nem séculos podem diminuir dores de perda. Usa o que queiras, olha as anestesias gerais são uma bela forma de plaft...abordar a questão, ou gases, ou sei lá, deixo isso ao teu critério, mas não me venhas em surdina, para que não te perceba, para que nem me dê conta e depois me sinta violada, revoltada pela tua usurpação. O silêncio não combina com o teu desfecho. Fá-lo acontecer num grito avisado, para que também eu possa gritar a dor que me deixas (para que no teu grito abafes os gritos dos (in)conformados. Sei lá. Livra o Natal das crianças deste espírito de balancete dos vivos, porra!
Pronto, agora já pus os pontos nos is, já me devo poder espalhar ao comprido. 
E agora, nada podia calhar melhor, para condizer divinamente com o meu pedido, Wilhem Stenhammar - Piano Concerto No. 2 in D minor, Op. 23 - II. Scherzo (Molto vivace) acompanha-me neste recolher de sentimentos menos dignos de serem partilhados. E sinto-me menos nostálgica, ou menos revoltada com a nostalgia e as saudades dos meus mortos.

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