Odenildo Sena

DIAGNÓSTICO: CARÊNCIA DE POESIA Há tempos se maldizia daqueles sintomas. As dores do mundo eram um fardo que lhe pesavam sobre os ombros. Andava desanimado e com quase nenhuma coragem, como se a vida fosse mais despedidas do que encontros. Já não conseguia ver graça alguma nas pequenas coisas. O que antes era fonte de encantamento e força, para driblar os dissabores naturais do dia a dia, já não o seduzia nem o encantava. Os dias banhados pelo Sol nada lhe diziam. O Céu azul a emoldurar a primavera lhe era indiferente. As flores coloridas a dançar valsa nos canteiros em redor da casa, embaladas pela brisa da manhã, não mais despertavam nenhum interesse em suas cansadas retinas. A desencontrada sinfonia diária dos pássaros, antes traduzida em doce harmonia pelos seus atentos ouvidos, agora lhe soava monótona e enfadonha. Enfim, na solidão do mundo e de si mesmo, era onde ainda conseguia encontrar algumas gotas de força para sua existência, mas eram confortos paliativos. Depois de muita insistência dos poucos amigos que conseguiam romper o bloqueio do seu isolamento voluntário, prometeu que naquela manhã procuraria ajuda. E, a duras penas, juntou ação às palavras. Mas teve uma baita surpresa quando a secretária anunciou seu nome e abriu a porta para a sala contígua. O consultório do doutor não era um consultório. Era uma grande biblioteca. E ele, o paciente, viu-se como uma ilha cercada de livros, muitos livros, por todos os lados. Ainda sem entender a situação a que fora levado pela insistência dos poucos amigos, sentou-se em uma poltrona diante da mesa do doutor e com ele compartilhou as dores que o afligiam. Depois de lhe ouvir pacientemente, sem qualquer interrupção, o doutor liberou um sorriso, daqueles largos e acolhedores, apoiou o queixo nas duas mãos e balançou a cabeça com a confiança de quem, por larga experiência, traça com precisão o diagnóstico do paciente. Em seguida, deslizou a caneta sobre o receituário que estava à sua frente, destacou a folha, dobrou-a ao meio e, sempre armado do mesmo sorriso, levantou-se, deu um abraçou no paciente e lhe pousou nas mãos a prescrição médica. Em poucos dias, o paciente retornou ao consultório para agradecer ao doutor pelo verdadeiro milagre que fora a sua cura. Trazia estampado no rosto um sorriso que traduzia a certeza de quem havia aprendido que, nas adversidades do dia a dia, o lado bom da vida pode ser encontrado nas miudezas das coisas e dos gestos. O doutor tinha razão: o paciente sofria de carência de poesia. Não à toa lhe havia receitado “Meu quintal é maior do que o mundo”, de Manoel de Barros, quatro vezes ao dia. (O. Sena)

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