BILLIE HOLIDAY: SOLO
Não tenho mais visões, não tenho obsessões,
sigo a trompete apenas, a ternura
é esse outro lado das coisas em que me perco
porque nada mais me chama e nada mais
revejo no lentíssimo torpor que pelas veias
senti outrora num azul imenso
que mais do que tocar-me me esvaía
no inferno do mundo e em seus ramais
de pura nostalgia, tristeza e desencanto.
Só ergo agora a voz para esquecer
e ter o olhar toldado para as coisas
que como grito lancinante escuto no silêncio
enquanto outras vozes me chamam,
outros indícios me vêm perturbar
quando pressinto a noite antiquíssima
em que se esconde o sobressalto
da serenidade do meu tempo.
Nem já a sombra aguardo
ou o sentido destes brilhos espessos,
estas chamas que consomem o meu corpo
e a minha alma no mistério de tudo
e no liminar enigma que adensa nos outros
os sentidos, certa atenção venal, um desespero
que em fumos e rastros me pergunta
por esta vida que já não é minha
e no coração recebo como salvação e ruína.
Sigo a trompete, o subtil sinal da despedida.
Só ergo agora a voz para esquecer.
ORAÇÃO NO HORTO
Bem-aventurado seja o inferno que há na terra
e o trabalho nos campos cada dia,
e o gado nos redis que nos aguarda,
e as aves que chegam dos confins
dos desconhecidos lugares que manteremos
na frágil proximidade dos segredos. A inocência
inútil seja bem-aventurada
quando além do caminho só existe
um outro abismo, e água, e nada mais.
Bem-aventurada seja a treva infinda,
este travo na língua a desespero,
este rastro de fumo que nos chega
dos confins do deserto e seus oásis.
Glorificada seja essa cabeça
que insidiosamente foi degolada
e o poder do Pai não protegeu
da essência da infâmia e do esquecimento.
Sob o silêncio outro silêncio arde.
Glorificado seja o que comigo chora.
in Livro Paixão
(Prémio Victor Matos e Sá 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes 2003)
Sobre o autor: Amadeu Baptista nasceu no Porto a 6 de Maio de 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do Pen Clube Português. Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros coletivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai. Poemas seus foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. Fundou e codirigiu (com Álvaro Holstein Ferreira e Vergílio Alberto Vieira) a publicação Babel – fascículos de poesia, e coorganizou (com Egito Gonçalves) a revista Orfeu 4. Organização de antologias: Quanta Terra!!! - Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, 2001; Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia, 2001; Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80, em col. com José Emílio-Nelson, Porto, 2003. Integrou o Júri do Grande Prémio de Poesia APE/CTT relativo ao ano editorial de 1993, 1997 e 2003; o Júri do Grande Prémio de Literatura Biográfica APE/C.M. do Porto relativo ao ano editorial de 1997 e o Júri do Grande Prémio do Conto APE/Câmara de Vila Nova de Famalicão, relativo ao ano editorial de 1999. Obras publicadas: As Passagens Secretas, Coimbra, 1982; Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa/2, em col.), Porto, 1985; Maçã [Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985], Porto, 1986; Kefiah, Viana do Castelo, 1988;O Sossego da Luz, Porto, 1989; Desenho de Luzes (edição galaico-portuguesa), Corunha, Galiza, Espanha, 1997; Arte do Regresso (pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993), Porto, 1999; As Tentações, Santarém, 1999; A Sombra Iluminada (in Douro: Um Percurso de Segredos, em col.), s/l, 2000; A Noite Ismaelita, Guimarães, 2000; A Construção de Nínive, Porto, 2001; Paixão (Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Porto, 2003; Sal Negro (in Sal Negro Sal Branco com 25 fotografias de Rosa Reis) Almada, 2003;O Som do Vermelho – tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro, Porto, 2003; O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000 / poesia], Almada, 2004; Salmo (com a reprodução de um desenho de Rogério Ribeiro), Porto, 2004; Negrume (com desenhos de Ana Biscaia), Lisboa, 2006; Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007), Vila Nova de Famalicão, 2007; O Bosque Cintilante [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007], Vila Nova de Azeitão, 2007 (ed. fora do mercado); Balada da Neve e Outros Poemas, Maputo, Moçambique; Outros Domínios (Clamor por Florbela Espanca) – [Prémio Literário Florbela Espanca, 2007], Vila Viçosa, 2008; O Bosque Cintilante [id.], Porto, 2008. A publicar: Estrela de Bizâncio – [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000 / prosa]; Poemas de Caravaggio – [Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007]; Sobre as Imagens – [Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008]
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