António Lobo Antunes









"E pronto, não tenho mais a dizer, julgo que estamos perto do fim porque a chuva abrandou e nenhum som nas telhas, gotas que rareiam  talvez, nuvens mais insignificantes, altas, não ameaçando ninguém, tudo se transforma  à minha volta e não me refiro à casa somente, ao meu passado onde novas memórias sem relação com as anteriores se demoram um momento e vão-se, uma senhora a rir e os braços cheios de duplos queixos, tanto prazer naquele corpo enorme e eu a bater as palmas feliz, pedaços de recordações que a cabeça ilumina tornando a perdê-los sem que me despeça deles, serei uma criatura a sério ou uma invenção de quem escreve, uma marioneta, se calhar pensou
- Preciso de uma mulher aqui
e construiu-me capítulo a capítulo aborrecendo-se comigo, talvez esperasse outra pessoa, palavras que o contentassem mais, o céu a enegrecer entre as nuvens que por seu turno embranquecessem e a senhora gorda a inchar, não passo de uma voz julgo eu mas de uma voz porquê, perguntas e perguntas e se tento parar numa esperança de resposta o que faz o livro esporeia-me, aumentou o corredor, pôs o quarto da minha mãe ao fundo no sítio que o meu irmão João ocupava para que eu pudesse sair sem que notassem, deu duas bengalas à Mercília em lugar da única que tinha carregando-lhe na doença e na idade, esta casa melhor antes da sua chegada, quase nem um parágrafo a respeito da sala e o jardim ignorado, a senhora que ri é minha, não dele, não leve o que me pertence que já levou quase tudo e depois da última página, no caso de ser uma marioneta, deixarei de existir, o que sobrar de mim durará algum tempo até me esquecer como esqueceu os outros os que mandou embora, já não são úteis, ala e não fico nem um minuto num lugar que não ´meu, o meu irmão Francisco mostrando-me papéis
-Não são donos de um parafuso vocês"


In Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?



Sobre o autor: António Lobo Antunes foi criado em Lisboa, e licenciou-se em Medicina, optando pela especialidade de Psiquiatria. Entre 1971 e 1973 viveu em Angola, onde participou, como tenente médico do Exército, na Guerra do Ultramar. Posteriormente exerceu a profissão no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, até 1985.
Em 1979 publicou os primeiros livros, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, que obtiveram grande êxito e muito boa recetividade da critica, seguindo-se, em 1980, Conhecimento do Inferno. Estes primeiros livros são marcadamente biográficos, e estão muito ligados ao contexto da guerra colonial; transformaram-no imediatamente num dos autores contemporâneos mais lidos e discutidos, no âmbito nacional e internacional.
Em termos temáticos, a sua obra prossegue com a tetralogia constituída por A Explicação dos Pássaros, Fado Alexandrino, Auto dos Danados e As Naus, onde o passado de Portugal, dos Descobrimentos ao processo revolucionário de Abril de 1974, é revisitado numa perspetiva de exposição disfórica de tiques, taras e impotências de um povo que terão sido, ao longo dos séculos, ocultados em nome de uma versão heroica e epopeica da história. Segue-se a esta série a trilogia Tratado das Paixões da Alma, A Ordem Natural das Coisas e A Morte de Carlos Gardel — o chamado «ciclo de Benfica» –, revisitação de geografias da infância e adolescência do escritor (o bairro de Benfica, em Lisboa). Lugares nunca pacíficos, marcados pela perda e morte dos mitos e afetos do passado e pelos desencontros, incompatibilidades e divórcios nas relações do presente, numa espécie de deserto cercado de gente que se estende à volta das personagens. A separação da mulher terá passado a constituir definitivamente o nexo central da sua obra, numa clara demonstração da incapacidade de resolver este trauma.
António Lobo Antunes começou por utilizar o material psíquico que tinha marcado toda uma geração: os enredos das crises conjugais, as contradições revolucionárias de uma burguesia empolgada ou agredida pelo 25 de Abril, os traumas profundos da guerra do ultramar e o regresso dos portugueses do ultramar à pátria primitiva. Isto permitiu-lhe, de imediato, obter adesão junto de uma certa fação de leitores, que, no entanto, não foi acompanhado pelo lado da crítica. A pouca adesão a um estilo excessivo que rapidamente foi classificado de «gongórico» e o tipo de público, contribuíram para alguns desentendimentos persistentes que se atenuaram com a repercussão internacional (em particular em França) que a obra de António Lobo Antunes obteve, mas que não desapareceram.
Em 1995 organizou com José Saramago num encontro de escritores luso-brasileiros na Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento (FLAD).
António Lobo Antunes tornou-se um dos escritores portugueses mais lidos, vendidos e traduzidos em todo o mundo. Pouco a pouco, a sua escrita concentrou-se numa temática concreta, adensou-se sem grande eficácia narrativa, ganhou em espessura e perdeu em novidade, compensando isto com recurso ao confronto e ao choque. De um modo impiedoso e obstinado, o autor trata a sua visão distorcida sobre o Portugal do século XX.
A sua obra prosseguiu numa contínua renovação linguística, tendo os seus romances seguintes (Exortação aos Crocodilos, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, Que Farei Quando Tudo Arde?, Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo), bem recebidos pela crítica, marcando definitivamente a ficção portuguesa dos últimos anos.
Em 2005 foi distinguido com um dos mais importantes prémios literários do mundo: o Prémio Jerusalém. Em 2007 foi distinguido com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário de língua portuguesa. Em 2008 foram-lhe atribuídas, pelo Ministério da Cultura francês, as insígnias de Comendador da Ordem das Artes e das Letras francesas.
Para continuar a ler, aqui


Comentários

Mensagens populares