Manuel Tavares
Há coisas que nunca deveriam sair de onde estão.
O olhar nem sempre revela
Tal como o pensar
Nem sempre reflete
Coisas da razão.
Saí de casa. A rua adensa-se a cada passo. Olho os rostos que avançam apressados, não sei para onde vão...porque correm eles todos os dias? O que pensam nas horas mortas nos comboios, nos autocarros, nos automóveis?
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Volto atrás. Dentro de casa vou deixando pedaços de mim. No quarto de banho encontro um eu matinal, na cozinha os horizontes "abrem-se" para ouvir notícias cada vez mais iguais. O quarto de dormir esse continua parado, com aquela nuvem espessa e protetora de muitos sonhos, muitos cansaços, muitas carícias, muitas promessas, mas, sobretudo, muito, muito sono.
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Tropeço a ver o jornal num quiosque. Não sei que procuro naqueles pacotes de letras e imagens insidiosamente colocadas para chamar a nossa atenção...Corro para o "guichet" e compro o bilhete. Oiço uma voz roufenha "Inter-regional para Coimbra na linha 2", e não sei porquê apresso o passo mesmo sabendo que ainda faltam cinco minutos para fazer apenas vinte metros... "Calma", digo eu para mim próprio, e com este remédio consolo-me pensando que afinal sempre vou tendo algum autocontrole perante as minhas irritantes reações involuntárias.
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Cinco minutos. Foi quanto disse a mim mesmo que ia demorar o meu duche. Ah! Mas a água quentinha a descer-me pelas costas como mil mãozinhas de fada cantando "Só mais um bocadinho". Coloco a água mais fria para "me por fino" e saio triunfante pensando nesta pequena vitória espartana, ascética como o "raio que o parta". Quantos de vocês conseguem colocar água gelada no fim do banho em pleno inverno!? Ah!? Pois, pois... Cobardolas...
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Está um frio de rachar em Coimbra. Mal sai do comboio as orelhas entram em profundo choque térmico. Vou aquecendo enquanto subo as escadas em direção à Sé Velha. Coimbra, neste ano de dois mil e um da graça de Deus, é sem dúvida uma linda cidade, mas tudo parece fazer concorrência com a Sé. Os prédios têm um ar baço, mesmo os aparentemente mais novos, e por toda a cidade há uma atmosfera “vintage” ...Bem, desde que não me saia de uma esquina um estudante a gorgolejar um faduncho caquético (que isto do fado, apesar de gostar, é daquelas coisas que gosto de ouvir voluntariamente, nem sei explicar porquê). Acho que aquela coisa romântica do diletante e orgulhoso membro da academia coimbrã já aborrece um bocado...
Não se fiquem pela tradição rapazes e raparigas que esta não enche a barriga a ninguém.
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Na cozinha dá-me vontade de comer tudo mas como sempre acabo invariavelmente a mastigar o mesmo, ou porque não tenho tempo ou por simples preguiça.
Imagino sempre um pequeno-almoço como sumos exóticos, queijos e doces variados, torradinhas suculentas e croissants fofinhos...enquanto isso engulo uma chávena de cevada e duas ou três bolachas de água e sal, agarro numa banana (é mais fácil de descascar) e saio a correr porta fora.
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Entro no conservatório e começo a distribuir os cumprimentos da praxe. Agarro no livro de ponto e na guitarra e subo apressado para a sala, o meu reduto e câmara de tortura. Entretanto o aluno chega muito antes do horário estabelecido e para minha irritação entra com a maior naturalidade na sala. Não sei porquê não me importo de ficar depois da hora mas detesto começar antes da mesma. Peço-lhe que aguarde roendo-me todo por dentro, ele parece notar e de um ápice recua rápida e estrategicamente deixando o leão na sua jaula.
"Não te preocupes que eu já te trinco..." Penso eu em murmúrio mental...
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Mordo a língua ao mastigar uma chiclete que já se encontra em avançado estado de anemia. Primeiro a surpresa e depois aquela dor aguda e desagradável que todos tão bem conhecemos. Como tenho de direcionar a minha fúria cuspo-a energeticamente pela janela do comboio, só que esta realiza um caprichoso arco e bate no parapeito fazendo um "rebound" em direção aos pés de uma velhota. Humilhantemente baixo-me perante o seu olhar acusador e com um gesto seco lanço-a à mão na direção do anónimo exterior...
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AAAAAAAAATCHIMM!!!!!
Não tenho tempo de colocar a mão à frente da boca e sinto que o espirro foi bastante produtivo. A reação estranha do meu aluno/alvo não me deixa dúvidas...desfaço-me em desculpas, mas este parece ainda mais envergonhado do que eu enquanto apressadamente pede licença para ir à casa de banho já a caminho do objetivo.
Desolado, não posso deixar de pensar que há coisas que nunca deveriam sair de onde estão...
© Manuel Tavares
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