Mockinbird - The turn of the tides
Fazia muito tempo que vivia naquele corredor de água, de sete em sete ondas, existindo como uma delas, menos, como uma gota nesse intervalo, em que coexistir era consciência. Alguma. Vulnerabilidade. Muita. Como a bacia dos oceanos, mutável. Rendição.
Baixei os olhos para as gaivotas bebés que ousavam, ora entrar no mar de Brahma, divertindo-se, fazendo-lhe frente, ora depenicando entre as conchas e o entulho, bocados de bivalves, que esse corpo de água arrastava para a orla. Na bíblia, Mateus 6:25-34. Sede vós como aves que, nem semeando nem segando, nem ajuntando nos celeiros, Deus alimenta, cuida e garante. Essa fé, inabalável, na providência que era, para elas, a vivência do agora, catando e colhendo, voando e abençoando o olhar dos que apreciavam as suas brincadeiras marítimas. O berçário só se fazia possível de ser observado por se unirem as condições favoráveis, do mar desbordante, revoltado e denso e a praia vazia.
No ângulo cego, alguns cargueiros compunham o horizonte, Blavatski adormecida no meu colo e, de quando em vez, dois vultos ao longe, oscilando entre um pescador atrevido nas rochas, um casal no outono da vida, um cão sem trela e com dono, um vigia que se via substituído entre turnos, alguns bandos de aves, e ao olhar-me naquela espreguiçadeira, eu, a avó Bina do avô Rodrigo, a cesteira da montanha no mar, a ermita fora da gruta, atrevendo-se noutros caminhos, a rasgar a zona de conforto bastante incómoda, podendo gritar liberdade, dei por ti, a subires-me da memória, a que reside entre ventrículos, membranas, troncos e artérias, alcançando a mente, descendo novamente, sem essa capacidade de focar o essencialmente necessário, o meu bem estar, exaurindo esforço de controlar afetos, trazendo-me lágrimas de mar e, então, nesse momento, derrotada, deixei de lutar, eu contra mim mesma, deixei que me subisses e crescesses, como a maré cheia, tomando conta de tudo, atomicamente falando.
Ouvi o meu pranto, entre o bramir do mar e o piar das gaivotas, entre o passado e a espuma da ira dos tempos. E eras tu, o mar, as gaivotas e as minhas memórias, enroladas, enfurecidas, desgastando-se contra o paredão de águas turvas, pedras virando areia, de silêncios urdidos entre camadas externas de entulho emocional e a materialização dessa parede que em mim ainda era tanta água, contida, permiti-me verbalizar a dor, entre pausas de uma sinfonia inacabada, que a divina sapiência transformou na lisura deste amor incondicional, desta vida imensa, e chorava pela tua ausência e por me permitir continuar a contemplar-te para além dela, face à impossibilidade de te ter corpo toque, abstinência de ver-te, continuando a sentir-te, que eras todos os tempos num só, neste, tal como ontem e antes de ontem, e na semana passada, no mês passado, nos anos passados e até neste que se findará, e antes dele, ergui para Platão o cartão vermelho, um coração bandeira hasteada sem pudor, e chorei-te para todo o sempre oh sailor, o Chris de Burgh na minha boca molhada, can you hear me, sailor, hear my call, tonight, something's never change, e os acordes rasgaram torneiras imensas, diques, barragens, que não secando fontes ou quebrando pontes, se fizeram margens, eu numa e tu na outra, e ouvi outra vez na minha imaginação Richard Bach, que não há longe nem distância, e os músicos, os compositores, os maestros, os instrumentistas, os refrões, e até as aves vão contaminando a fé, a minha, que me faço leve e atrevida entre ondas e vou misturando o acervo musical entre as várias estações do meu corpo, este veículo, onde se abrem clareiras entre a gruta e o mar, montanhas e florestas, trazendo o que foi antes de ti, que romantizando os sentimentos, atribuindo-lhes materialidade verbal, me vi calcorreando atrás, pelos registos, mapeando todos os que te antecederam, muito antes de Camel, muito antes de Acdc, de White Snake, antes ainda de Joplin, muito antes de Zeppelin, antes de ELP, antes de JM Jarre, de Vangelis, de Pink Floyd, de SMB, de ÃPP, de Dire Straits, de KC, antes de Genesis, antes de BJH, de Marrocos, antes de ti, já cá estavam Vivaldi e AG, Supertramp, MJ e BM, Mike Oldfield, mapeando o que existia antes de tu seres tu em mim, e eu ser eu sem ti, e foi nesse depois que encontrei a chave, que antes de ti, nada, e pareceu-me estar a construir um bunker com todos os que te antecederam, o próprio Saramago guardando todos os nomes, e eras sempre tu, à prova de fogo e de água, de qualquer bomba atómica nuclear, onde nenhuma intempérie perturbou o batimento sincopado do músculo cardíaco entre os acordes e os instrumentos. Nem Neptuno destruiu a ilusão. Nem sequer a tua barbárie pontual nas palavras, secas, curtas, na machadada final, nem do pesado tapete que estendeste para calares os sentimentos, a fim de que eu calasse os meus.
Nada buliu. Neruda, Júdice, Rumi, H Helder, Lorca, até Shakespeare, Frost e Dickinson. Numa das muitas cartas que te escrevi, pelo menos numa, senão em mais, afirmava que nada existia antes de ti. Porque rastreando os sítios de mim inabitados, tu eras o que residia em todos, que conhecia as sete ondas e o intervalo, a estrofe e o verso, o fonema, vogais, semivogais e consoantes, os grafemas e antes disso, a língua a colar-se ao teu ombro, na tua boca, só depois a fala articulada e o olhar em sintonia, a apoteose de Aquiles e a fénix, eu a fénix que fizeste renascer, foste a luz a iluminar a sombra da caverna que habitei, onde jazia sem vida e, cuja ressurreição foi interrompida, para que se cumpram as atas, o destino, os anais já escritos muito antes de mim, viva. Nunca antes de ti.
Porque, meu amor, antes de ti foi-se o tempo, foi exclusivo a parir o verso por sentir-lhe a dor e tu eras a dor e o avesso dela. A alegria também. E depois de ti, a experiência que desejava não descrever, e menos sentir, de me fazeres falta, e muitos vieram e viram acoplar interstícios e intermitências, solfejos e sinfonias prontas. Nenhuma inacabada. Tu sim. Inacabado. Imortal. Feroz. Supremo. Mataria Platão se o encontrasse, ataria o filósofo a uma árvore seca e milenária e descerraria os cortinados dos milhões de anos sobre ele. Apagando-lhe o nome e o rasto.
Enquanto um braço forte da doutrina secreta me segurava o colo, irrompeste dentro de mim aos soluços, como orgasmos copiosos e incontroláveis, casablanca, o hotel astória, e as estórias que sobravam nos intervalos e a poesia que te nascia entre os dedos e a dor, essa saudade materna, terna de afeto e candura, entre a lembrança desse arroz de sanchas ( arroz esse que não podias digerir) e o perfume forte de almíscares, algures nas eiras dos castelos, entre a urze e os penedonos, ladeados de ciprestes, e o percurso dos teus dedos nas teclas, roland, korg, que importa?, com os olhos fechados, ou então, na areia da praia, entre arrependimentos e remorsos tecidos de emoções novas, entre dejetos de camelos e Fatmas, os adéritos da tua ferida, as almerindas do verbo cardíaco, as paredes brancas e férteis de fantasmas do medo e da fome de liberdade, e o meu amor, em crescendo, invadindo a atmosfera, procurando encontrar-te, fazendo da minha energia ameias em ti, cercas, muralhas, fortificando o teu dorso, e orando preces ao alto, para que te guardasse o peito, que lhe mendigava proteção, a aduane, a diane, as perdas e as expectativas jogadas, mas ao teu peito, colo, já eras ungido pelo soberano porvir, tu já eras todos os sonhos que me atrevi a desenhar. Coroei-te rei, muito embora sem monarquia, sem trono, sem manto, nem ceptro, there's a mockinbird, singing songs in the trees, rain, sea, surf, sand, clouds and sky, reescrevi o teu nome nas areias da terra, nas janelas, nos vidros, no vento, hush now, baby, don't you cry, e eu chorava contigo, tu lá, no longe e eu lá contigo, sendo que distância nenhuma me obstaculizava, que o amor, qual operário voluntário, revolucionário, agregava almas militantes que te rodeavam em todas as direções, eu era vento leste, beijando-te a fonte, os olhos, os ombros, embora o meu corpo permanecesse ali, naquela vila cinzenta, oitocentos e quarenta e seis quilómetros, até podiam ser mil, quilómetro nenhum, tempo algum se interpôs entre o meu amor e o teu medo, o meu medo e o teu corpo, Tanger era terreno arenoso no perigo de te perder com a verossimilhança de danger, e desdobrei-me em mil, cada milha de tempo e espaço eram o meu desejo pelo teu abraço e agora, não era praga, era ave rara, que a divina providência, por castigo ou militância, devoção ou platonismo, me havia condenado, eu mesma, ao ostracismo, que o tempo era próprio mais disso que disto, revolução, guerrilha ou mutismo, e depois de tudo te chorar, retirei a Blavatski do peito, arrumando-a no saco e dei por mim, outra vez ainda, repetidamente, a mendigar a Brahma(n) o esquecimento do teu nome, a mendigar que te substituísse pela ausência de memória, doce esquecimento que só o sono perpétuo, entre existências, costuma trazer. Ninrude. Nimrod. Soletro devagar. Até que seque na glote.
A música continuou a tocar, Caught in the light, Loving is easy, e eu a pontapear-me por dentro, que havia mais aves no céu, que urgia mais de mim na terra, que a fé era filha da ora mãe, ora madrasta, Gaia, de todos os que se ajeitavam ao redor da existência, entre desistências e cansaços, entre gritos e silêncios pausados, entre montanhas que se moviam e mares que se abriam para Moisés, e nem eu nem tu fomos salvos, nenhum dos dois se curou, nem uma só estrela se apagou do firmamento, Only love gonna take you higher, requiem for a dream, e fico-me por aqui.
Incondicional. Rendição.
O amor que nos uniu, quem sabe, volte a fazê-lo, noutra existência. Nesta, cortamos elos e já chovi por décadas. Depois da parede de silêncio, de tempestades de neptuno, que se hão de manter, saturno em marcha a ré, do plasma de folhas áridas, estéreis, o miasma de se não dar por vencido, entrego o critério do amor incondicional a Deus, que a chuva e o vento arrumarão, na minha saída. Big exit, digo.
Que esta ternura se mantenha a servir-te de cobertor e colchão. No meu vertex, latente, entre escorpião e sagitário, figura presente entre o teu e o meu neptuno, em trígono à tua lua, em sextil com vénus e marte, o teu fantasma (inprinted mark) mantém-me fantasma. E, racionalmente, peço-me descanso e coerência. Obrigo-me a isso. Depois de todas as sincronicidades, depois de todas as estações, depois do intervalo na consciência, venha o adormecimento de sétima. Musicado. E letal. There's a mockinbird, singing songs in the trees. Just for you and me.
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