Crónica de vésperas de S. João no Puorto
Quando me pus a pé, a cabeça zoava com ruídos trazidos do onírico, mas o Che é que mandava, ele era o meu comandante e estava abismado. Atirou-me com o mocho da janela abaixo e este estatelou-se, sem partir, junto aos pés do criado mudo. Apesar de ainda estar cansada, não tenho a mínima ideia porquê (quando dormimos, alguns de nós faz horas extras noutros planos, e, tenho quase a certeza que foi isso), o Che não ia levar com a minha irritação. Estava habituadinho a ver-me a pé entre as sete e meia e as oito da matina e já passava das nove. Abri a janela e calcei os chinelos de dedo, para ir fazer o chichi da praxe e lá estava ele, a roçar-se entre as minhas pernas, a lembrar-me dos seus cereais que se encontravam no saco fechado, dentro do armário. Fiz-lhe umas festas e empurrei-o para fora do wc. Depois de lhe mudar a água e encher-lhe o prato de ração, fui tratar de mim. Lembrei-me do pêssego que o Belmiro me tinha dado, trazido de Lamego, juntamente com as cerejas de Resende que comprei perto do Doce Alto, em Costa Cabral, quando fui à minha mãe. Cerejas não, cerejonas amarelas. Fui ao saco isotérmico e tirei de lá dois saquinhos, o que tinha o pêssego e um outro, das bolachas de milho. Tirei três. A conta que Deus fez. Abri outra garrafa de água e sentei-me. O pêssego tinha muito sumo e a sua pele era veludo. Demorei a comer. O telemóvel tocou.
Do outro lado da linha, o agente imobiliário perguntava se me tinha acordado. Que o desculpasse, mas queria remarcar uma visita e eu agradeci. O interesse era, sobretudo, meu, ainda que ele ganhasse alguma coisa com a questão e acrescentou: a Apa diz-lhe alguma coisa?
-Perdão?
-Sabe onde é a Apa?
-Não tenho ideia nenhuma, mas se me der uns minutos, já lhe ligo. Vou ao google.
-Não precisa, na verdade, daqui a uma hora posso encontrar-me consigo lá, ou noutro sítio, mas é que estou aqui por perto. Se você ainda estiver no Bonfim, bastarão quinze minutos para se pôr aqui, na esquina de Santa Catarina. É que o imóvel está disponível para ver, mas quero mostrar-lhe um outro na Cordoaria. Assim, se não tiver nada agendado, convidava-a para o almoço e iríamos ver os três imóveis de uma assentada só.
Torci o nariz e queria dizer-lhe que não. Remarcar, pelo meu prisma, era remarcar para uma hora conveniente para ambos, mas a porra da minha necessidade ditou a concordância.
-Com certeza. Dê-me por favor meia hora. Vou tomar um duche e tomar um café rápido e daqui a nada estarei aí.
-Faço melhor ainda. Dou-lhe essa meia hora e passo para buscá-la aí no Bonfim, que lhe parece?
-Parece-me mal, desculpe, mas preciso de apanhar um saco de roupa suja e levá-la comigo, deixar água e ração ao gato, se vou ficar muito tempo fora daqui. Desculpe, não precisa incomodar-se.
Queria ir ver a minha mãe, depois de cauterizada a veia, sentia-a mais cansada e com mais dificuldade respiratória, com um tapume no nariz, respirar tinha-se tornado algo bastante mais difícil. Ele não percebeu nem a minha preocupação e nem a minha irritação na voz, ou fez de conta e insistiu:
-Acredite que não é incómodo nenhum. Prefiro ir buscá-la a esperar aqui, neste calor.
Quando lhe desliguei o telefone, estava a rosnar, como fazia com a Kirie, a brincar, mas não tinha vontade nenhuma de brincar e, decididamente, o dia tinha começado mal. Esperava que melhorasse com o desenrolar. Tempo contado. Stress. O prazer do café entrecortado pela minha necessidade de teto rapidamente. Prioridades, prioridades.
O dia melhorou. Tudo tem defeito, e se nada é perfeito nem tem de ser, para quê punir-me a mim mesma com uma contrariedade externa à agenda, uma merdice que, em duas ou três horas, estaria, senão resolvida, pelo menos encerrada?
Lá se foi o prazer, cortado, do banho, que foi a correr, o prazer do café, somítico, que foi a correr, socorrida pelo rececionista, lá ficou a porra do saco de roupa suja na cadeira do quarto do hotel, à espera de um tempo sem pressa, para passar na lavandaria do raio que me parta.
Dei por mim a contabilizar o número de imóveis que tinha visto online nos últimos seis meses, antes de sair da casa que foi abrigo e gaiola. Milhentos, seguramente. Pessoalmente, mais de quinze, até agora. A bolha imobiliária era um tema frequente e algo corriqueiro no geral e particularizando a esta cidade, brutal. Não só não havia produto, como o que havia encontrava-se hiperinflacionado. O arrendamento era impossível. Haveria por detrás disto, muitos interesses e aproveitamentos da parte dos proprietários e, a par com isso, imensas exigências.
Resumindo, o dia melhorou. Graças à música e a um alfarrabista que eu nem sabia que existia, em frente à APA. Não ponho defeitos nos imóveis. Mediante as minhas prioridades, estavam no resvés Campo de Ourique. Tive que explicar uma milionésima vez que não tinha como prioridade o luxo, os acabamentos, a disposição do imóvel face ao sol. Prioridades eram ser t2 (e podia dar-se ser um t1+1), estar equipado e mobilado e não ter uma renda exorbitante, a bater no teto da minha insignificância. A localização era importante triangulada com a segurança, porque se tivesse que escolher o que realmente queria, teria que dizer, grosso modo, perto do mar ou do rio, com todas as mordomias que mereço, jacuzzi, banhos turcos, massagista incluído, refeições numa big lounge onde nunca se instalasse a maldita rotina cinzenta da opressão, onde pudesse voltar a reunir os meus cães e gatos e dizer-lhes que os amo, onde tivesse árvores e pássaros, deus meu, tenho visto tanto pássaro, pombas, rolas, gaivotas, andorinhas, sim andorinhas, montes, aos magotes, então em Costa Cabral, naquelas árvores defronte, juntam-se ali coletividades de penas e bicos. Águias não, nem falcões, muito menos mochos e corujas. Isso fica para uma próxima temporada ou vida, quiçá. Não procurava nada de especial. Mas tinha que ser uma casa, um apartamento que me fizesse querer voltar, entrar, sentar, voltar a sonhar. Essa é a minha maior prioridade, encontrar o lugar certo a que possa chamar lar e me injete, diariamente, vontade de trabalhar na construção de um mundo melhor. Não vou falar dos imóveis e nem dos agentes imobiliários. Tenho para mim que quem o vai fazer, já foi escolhido e está a tratar das diligências associadas a isso. À minha mãe, tanto lhe faz onde fique, se a ver o mar ou o rio, só quer estar em paz e sossego e em Costa Cabral não encontrou e está fora de questão. Fui vê-la e ajudar no que podia, sempre posso mais qualquer coisa, sempre posso lavar mais loiça, pendurar mais roupa, deitar fora, organizar, dizer chega, basta! E fi-lo com o senhor meu irmão, que está mais doente que a minha mãe e que ela, ao vê-lo, a assistir à sua degradação psicológica e emocional, ainda adoece mais e mais. Pesa-me tudo isso, mas não o suficiente para me retirar sorrisos e, menos ainda, fazer-me desistir dos meus objetivos mais nobres. Que se entenda, ver pássaros e gatos e cães e gente saudável faz e fará sempre parte da minha caminhada. Não almocei com o senhor. Fiquei satisfeita por lhe ter surgido um imprevisto. Quinta, irei ver mais. Por isso, depois de ter escolhido um prato no Eat Real em Santa Catarina que os morfes na Cordoaria não me convenceram, depois de ter bebido um sumo happiness, enquanto ouvia música no telemóvel e observava o turismo a ser parte da normalidade sem pausas e nem interjeições, rumei outra vez para perto da Apa, onde na montra de passagem, vi o Fernão Lopes, cronista mor do Reino, dos meus faves, de sessenta e sete, na sua décima primeira edição, a seis euros, a otimista que há em mim, sorria-se ao olhar todos aqueles livros no chão, nas prateleiras, dispostos e aos gritos, a berrarem-me: pega em mim, olha eu aqui, sou de sessenta ainda tu não estavas cá. Pareceu-me ouvi-los a todos, mas, francamente, num bom alfarrabista, somos todos nabos, não imaginamos a quantidade e a qualidade que se esconde atrás de capas sem viço, amarelos de tempo. É claro que fui entrando, é claro que fui olhando e namorando títulos e autores, desfolhando com cuidado, tantos desconhecidos, tantos estranhos e eu tão pequena, tão minúscula, tão insipiente, insuficiente para tanto sumo.
A melhor notícia (para mim) foi ter encontrado uma primeiríssima edição da Criação do Mundo de Miguel Torga, também de sessenta e sete. Tive que trazê-la. Ficaram lá os diários e ainda anda comigo, algures numa caixa, numa rua de uma ave peregrina, um de Ferreira de Castro, a ser devolvido ao dono. A César o que é de César. A mim, a Criação do Mundo de Miguel Torga, nesta primeira edição, a mim que mereço.
Depois de ter feito bué de cenas, de ter tomado dois cafés, depois de ter respondido a emails e ter andado com as bentas no meio de papelada, que ando a preparar uma bendita reunião à porta fechada, depois de ter falado com a minha mãe, depois de ter falado com quem me apeteceu e ter olhado para onde não devia, ainda tive direito a uma cereja no topo do bolo. Vi-te.
E depois de ver-te, que ver-te anula qualquer má disposição, és melhor que café ou erva, ou ovos moles, depois de ver-te, trouxe-te comigo, deitei a tua foto aqui ao lado e comecei a namorar, na tua frente, com o Fernão Lopes e o Miguel Torga, cada um na sua vez e tu a veres-me. Ficaste de castigo a olhar para mim e eu a ler estes homens, intercalados. Sabes o que me apetecia? Não te posso dizer, mas deixo esta pérola retirada à contracapa do Quinto Dia, da Criação do Mundo do Senhor Torga, esta frase, bem outorgada do Génesis:
Tomou pois o Senhor Deus ao homem e pô-lo no paraíso das delícias
E agora, repara bem como de um dia que começou mau, uma simples colher de alegria, que é ver-te (és melhor que qualquer xarope), sem querer (nem crer), ao retirarem-me da rua da ave peregrina, trouxeram-me ao paraíso das delícias, onde volta e meia, quando me corre bem, não só te vejo, como te sinto, sem te tocar ou te falar. Quis Deus a ironia fina entre nós e eu recobro de qualquer má disposição. E agora, vou parar de lavrar o meu campo e tratar de assuntos sérios, como a fresa e a semente do futuro. Guarda-me contigo.
A lua nova de câncer é pródiga em germinar fertilidades que, mesmo com dias maus e amenos, que tudo faz parte da receita, do conteúdo, não é só pacote, há-de dar uma rica colheita de frutos, não de sessenta e sete, mas do ano de 2025 que é um nove, igual à soma do teu ano com o meu ano, dividido por dois e reduzido ao elemento único. E antes do remate final, deixo-te uma brochura do Fernão Lopes, digno de registo, todo ele, mas não há páginas suficientes no blog e nem mulher alguma de ferro (a Margaret Thatcher não conta e nem a Merkel). Aqui fica, oh cereja.
"Como a estrela da manhãa foi claro em sua geraçom, seendo de honesta vida e honrosos feitos, no qual parecia que reluziam os avisados costumes dos antigos e grandes barões. Seus geitos e defesa na guerra mostravom tal autoridade que neuú era ousado, andando em sua companha, d'empeecer mais a seus êmiigos do que lhe per êl era mandado; de guisa que cada uû se dispoinha a comprir todos os seus preceitos, nem lhe conviinha de os quebrantar que aviinr lhe podesse; no qual porém sempre morava ûa discreta mansidom, que é ama dos boõs costumes.
Trazer molheres nem jogo de dados a neuû era consentido; e muito se trabalhava, quando tal desvairo antre alguùs nacia, per que começavom de se nom falar, de os concordar logo e fazer amigos; de guisa que seu arreal nom parecia hoste de guerreiros mas honesta religião de defensores.
Em todalas cousas muito sagesmente per igual pena e galardom procedia contra quaesquer que sua virtuosa voontade podia chegar com execuçom; e quando se assanhava contra algûas pessoas, com brando arroído era seu castigo; de guisa que ao seu pesado assessego mais aviam os homeês reverença que temor. El, em sua nova mancebia, desviado do humanal uso, começou de asseentar em si todalas boas condições que em ûu louvado barom nomeadas podem seer, como se o tesouro de toda ensinança fosse em êl encuberto; assi que cuidar em virtuosas cousas e poê-las logo em obra ocupava tanto tempo, muito mais daquelo que sua tenra idade requeria.
E porque semelhantes bondades nom eram usadas ântre os outros homeês, eran em êl teudas em mui grande conta; de guisa que u tantas virtudes aviam morada aadur podia neeù cuidar que vicio alguû podesse seer hospede; nem podia alguem em êl poer prasmo, que nom fosse avudo por malicioso; ca, posto que trabalhasse por encobrir sua mui louvada fama, seus virtuosos feitos eram pregoeiros dela."
Excerto de Fernão Lopes, Crónica de S. João I, páginas 60 e 61, Seara Nova, 1967.
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