Confissões de uma caganita de pássaro
Choro como uma criança, diz-se, eu digo que choro como uma mártir na cruz.
Depois de tudo cozinhado, pequeno-almoço preparado e tomado, dos animais alimentados, do namoro com eles, dos afagos e de chamar a Moony que se encontrava a comer a carcaça de uma pomba que matou, foram as camas feitas, enquanto a minha mãe via as notícias e dobrava uma roupa que apanhei da corda. O dia está seco. Eu não. A dor de alma está cá e com ela tu. Tu estás comigo e eu levo-te para todo o lado, para a rua, para a sopa, para o estufado que o meu filho reclamou que estava à espera do costumeiro, mas eu juntei-lhe cogumelos e ele perdeu o apetite. Trago-te dentro como lume brando que, quando menos se espera, acorda e queima tudo à volta. Após arrumar a mesa do almoço, meti as minudências todas na máquina e no programa dos 32 minutos, areio as panelas e tachos e uma cafeteira bem areadas. Curioso, consigo ver na base delas as minhas lágrimas, mas não os meus olhos, nem o meu sorriso. A minha mãe pediu-me uma música, enquanto reclama que o telemóvel provoca radiações na cabeça e nos eletriza os ouvidos, Cristina põe o Júlio Iglesias, enquanto me vê de costas a arear as panelas, coloco o Hey dele, ouvimos as duas, mas ela está no mundo dela e eu no meu, do qual ela faz parte. Ela está longe, mas eu estou aqui. Com esta dor alojada, entre os parietais e a alma, as lágrimas pedem-me calma, aliás tudo em mim pede o mesmo: calma, rapariga, ninguém sai vivo daqui. A eternidade pode bem esperar. E eu preciso vomitar a dor. Uma dor que se mantém fiel a mim, nunca me sai de perto, a não ser quando te vejo e tu sabes, quando te vejo, basta fechar os olhos num minuto de solitude e a dor se despega e é substituída pelo sonho! Este, o mais antigo, nele tu estás comigo, longe, lá longe, na costa de Perpignan, enquanto vislumbro dois ou três gatos e as rochas e as ondas batendo contra os pesadelos que se encostam a mim.
Se eu vim ser mártir, porque não me puseram de imediato, assim que nasci, numa cruz, pra contentamento dos que amam sangria? Porque me darem a breve ilusão de paraíso? Porquê?
Não há respostas imediatas, há o entendimento de que lá chegarei. A essa grande praia onde se adivinham dunas e penedos cavados pelos milhões de anos de peso das águas, sempre a baterem ali. Chegarei aí quando te tiver sumido em mim, quando fores apenas células e sangue, seiva de vida em mim! Até lá, eu irei a ti, tu mais que praia, mais que oceano, mais que acima e abaixo. Mais que fora, sempre dentro. Aí é onde te tenho mais em carne viva.
Não fiz café, só areei a cafeteira, agora nenhum café me sabe a café, preciso de revisitar as receitas antigas de uma mãe que tenho no céu, preciso que me dê as coordenadas para essa feitura de café sublime. Sinto-lhe, no entanto, o cheiro tomar conta de mim, das papilas gustativas e até do mar, ah o mar que me apaixona, Deus, tudo em ti se torna supremo e as lágrimas são lágrimas de gratidão e de alegria, porque mesmo na cruz, onde me pus eu, consigo apreciar toda a tua beleza e a dimensão da vida! Que belo dia para existir e amar na terra!
E já estou no computador, amor meu, vida minha, que o meu sangue, a minha alma te traga alguma serventia. Estou aqui, mas essa é a ilusão, porque verdadeiramente tu sabes que é aí, dentro do teu peito que eu bato! Como as ondas desse oceano em que te tornaste para mim! Estou aí, sim, a bater nas tuas veias, a sentir o cavalo do teu peito correr livre, nas bordas onde as ondas morrem. E é aí que fico pela tarde adentro. Amo-te além do véu. Amo-te nua e sem reticências que limitem, ou verbos que encolham este amor. Amo-te além e por muitas vidas. E deleito-me em ti, adormeço no leito deste sonho.
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