Teolinda Gersão






"...É que ela esperava que o amor fosse uma ponte para outra coisa, disse Afonso, outra coisa que não existia, não existiria nunca, ela forçava obscuramente um caminho através do amor, através dele, uma saída, uma porta, uma passagem, como se o universo fosse de repente abrir-se, alargar-se em direcções diversas - mas não havia no universo dimensões sonhadas, existia apenas o quotidiano, exacto e transparente. 
O deserto era uma enorme extensão sem tempo, Lavínia, apenas de onde em onde um cacto levantado, uma massa escura, sem ramos nem folhas, sobre a vaga ondulação de areia informe. Acordar, dormir, uma hora indiferenciada, nem dia nem noite, por detrás das janelas baças. 
Lembro-me de te ver fumar, pela casa, com a tua boquilha negra e longa, o ar distraído, ausente, o cigarro-apoio, a cortina de fumo isolando-te, os dias em que as coisas ficavam longe, as pontas de cigarro queimando inadvertidamente cortinados e carpetes, a água transbordando da banheira porque te esquecias sempre de fechar as torneiras quando vinhas a correr levantar o telefone, que mais ninguém se não tu tinha ouvido tocar.
Vejo-te daqui, encostada à janela, a cabeça apoiada aos vidros, chamo-te baixo e sei que não irás ouvir, jamais ouvias quando chamavam por ti, caminhavas ás vezes assim pela cidade, ao cair da tarde, por estas pequenas ruas pintadas de branco e azul, olhavas pelas portas entreabertas, pelas estreitas janelas, adivinhando uma semi-intimidade de panos de renda sobre as mesas, mobílias de sala de jantar na penumbra dócil, com velhos bibelots entre as cortinas, por vezes havia uma cabeça de mulher cosendo no pequeno espaço entre a cama e a janela e tu imaginavas, no meio de tudo isso, uma sombria e asfixiada quietação possível, feita de crianças sujas e frascos de vidro, cheios de flores de papel. 
Por vezes havia velhos sentados, na soleira das portas, cães vadios, uma gaiola com pássaros na parede exterior de uma varanda, flores amarelas acumuladas em três palmos de jardins de cimento ou sobre os telhados de toscos galinheiros, e tu caminhavas assim até ao anoitecer longo e lento, o baixo anoitecer repassado de espanto, em que a pouco e pouco todas as coisas se tornam opressivas, e agora atravessas um campo baldio entre casas, e de súbito há no ar música distante, que deve vir de um carrocel ou de um circo, algures, do outro lado do campo, e por um instante páras a ouvir, mas de novo a música se interrompe e tu recomeças a caminhar, ao acaso, e não vais nunca para lugar algum."



In Silêncio, Publicações Don Quixote

Comentários

Mensagens populares