João Marinheiro & Passenger

 




8.24h da manha. O último coração

(partilho porque aprecio textos intimistas)


Acordaste ao meu lado num lugar que me pareceu estranho, olhei ao redor, as cortinas eram o nosso quarto. Pousaste a cabeça no meu peito olhaste-me um momento.


- Sabes nunca deixei de gostar dele. Foi o meu primeiro amor, não sei se era amor, nunca explicamos isso um ao outro. Preciso de lhe falar isso. Não sei onde vamos dar. Se vamos fazer amor os dois. Não é isso que quero. Mas se acontecer. Olhei-te e o teu olhar desmentia as palavras.

- Ficas magoado se isso acontecer? Porque me fazes essa pergunta se sabes a resposta, e eu não posso dizer que fico.

Olhei de novo o quarto. Regressei ontem cansado. Disposto a reiniciar tudo, a ter uma longa conversa de olhos nos olhos. Não basta procurares o meu corpo em busca de prazer. Estava a precisar de me situar.  Sou de novo um marinheiro velho e desgovernado no mar imenso. Olhei o relógio novamente, agora é outro, com números vermelhos diferente do que me acompanhou mais de 3 décadas. 8.28h. O quarto está diferente estamos diferentes os dois. Estás mais magra. O cabelo finalmente liso e longo. Clareado. As minhas ausências libertam-te. Podes ser tu, e viver em função de ti. Quando estou presente fico com a sensação de que vives em função de mim. E o amor não é isso, o amor é livre, quem ama liberta não aprisiona. Não sei fazer-te verdadeiramente feliz, atormenta-me esta dúvida faz anos.

Estranho escutar as tuas palavras logo pela manhã. Uma revelação. Trinta anos depois. E se já tiver acontecido, e se agora buscas o meu corpo para me recompensar da falta cometida. Eu já fiz isso admito. E se perco a confiança em ti. E se as tuas palavras dizem uma coisa e os olhos outra. Vou reaprender a não olhar nos olhos de novo. O que os olhos não veem, o coração não sente, diz o povo. O povo tem sempre razão.

Comecei a desenhar algo na minha cabeça, uma desconstrução, estamos a entrar numa zona perigosa. As respostas aos meus sonhos de anos e anos estavam a aparecer. Nunca entendi porque sonhava e sonho ainda, que um dia encontras alguém que te faça verdadeiramente feliz e partes. Alguém que te leve a dançar na noite, a jantar a dois, uma viagem de avião para um paraíso distante. Alguém que te dê a mão num passeio pela beira-mar. Alguém que te faça rir e tremerem as pernas, afoguear o corpo e o coração. Entramos na curva perigosa, descendente de nós. A nossa vida é um risco descendente, duas linhas paralelas de uma linha férrea que nunca se toca. Assalta-me a dúvida.

 Desistimos de nós.

Procuras o meu corpo para te redimires das palavras. Buscas o meu sexo para acalmares o desejo. Excitou-te a conversa, o proibido. Desconheço-te por vezes agora. Não falamos. Tenho de reaprender saber beijar-te a pele e os seios, a acariciar-te como gostas. Faz anos deixei de dizer que te amava, e hoje não sei. Não te sinto minha. Escorregas-me por entre os dedos como a areia fina do deserto. Estou a ficar árido por dentro. Esforço-me concentro-me em que tenhas um orgasmo, pelo menos um orgasmo, depois descansas como leoa saciada.

Eu já fiz isso admito. E já não tenho segredos para ti...

Levanto-me com a sensação do dever cumprido. Os papeis inverteram-se agora. Durante muito tempo busquei o teu corpo, por vezes lutas inglórias e quando vencia, era uma estranha sensação de vitória amarga, cumprias a função de esposa/amante. Sempre pensei que não te fazia feliz o suficiente. Nunca conversávamos. Ainda hoje temos dificuldade em conversar por falta de assunto. Eu gostava tanto de conversar. Deixei para trás tudo isso. Depois durante anos inventei monólogos escritos, conversas a dois escritas a uma mão. Coisa de surdos que não levaram a lugar nenhum.  Inventei histórias e amores. Procurei amores para encherem o espaço vazio que sinto em mim. Transformei-me para pior do que sou. Demasiado ausente em mim, a viver num mundo paralelo e a sobreviver no dia a dia, a cumprir responsabilidades assumidas. - Egoísta. Insatisfeito! Dizias-me por vezes. -Tens razão, sou um enorme egoísta insatisfeito. Já não tenho remédio. Ou cura.

Nunca conversamos o suficiente. O amor não se aprende, constrói-se, li um dia. Um livro do prof. Quintino, uma espécie de carta fechada, deve ser isso mesmo. Sobretudo constrói-se partilhando as palavras, e as nossas são tão escassas por vezes. Tem dias que não nos falamos, cumprimos os papeis assumidos maquinalmente.

Agora estamos aqui. O quarto demasiado diferente. Parados, deitados, tu saciada.

Estamos parados em cima da linha frágil e perigosa da desconstrução do amor. Se um comboio passa e nos acerta esfrangalha-nos, e demoramos com toda a certeza a recompor, a buscar os pedaços, a reunir os ossos, a suturar a pele, a sarar as feridas, a disfarçar as cicatrizes mais superficiais, porque as profundas ficam como fibroses internas, que de tempos a tempos nos doem nas mudanças do clima.

Este mundo não é para velhos e eu envelheço por dentro. Acho que as palavras se encaixam como uma luva. As palavras do último livro que li. Vou tentar retomar a leitura recuperar o vazio em mim.

(1)..”. Esqueceste pouco a pouco o meu amor. Nunca me falaste de ternura. Vi, muitas vezes, o riso na tua boca, mas jamais disseste o teu desejo. E quando o teu corpo nos levava no sonho, como se nos perdêssemos em cada segundo, deixavas-me sozinha na escuridão...”

Autor de vários blogs na net, especialmente este angular, visual e expansivo como é o ângulo imperfeito, onde os barcos são mais do que simbólicos, reais e apaixonados. Porque existes em mim do outro lado do mar. A arte é o que grita em nós alegria. Digo eu. 

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