Memória de 22 de Dezembro de 2021

 Hoje vai ser francesinhas.

Almoço a quatro. Hoje não é Natal e o espírito dele anda nas ruas. Nas lojas, nos restaurantes, nos prédios, nos rostos de uns e de outros que já se preparam, comprando, comprando, comprando. Outros telefonam nos passeios, entre um cigarro que queima devagar e a promessa de pro ano ser melhor. Os sacos dos transeuntes carregam os dias de ontem e as horas que faltam para nascer o menino Jesus. O menino são muitos meninos que nascem em áreas geográficas onde não se come, nem bacalhau nem cabrito nem sushi ou roupa velha. É um Natal despido de insatisfação. Penduram um sorriso num saco vazio, mas a esperança espreita lhes nos olhos e querem crer que um dia, quando forem homens, terão presentes sem guerra e sem fome, sem as misérias que o capitalismo lhes trouxe todos os natais. Um dia poderão olhar o horizonte e sentir se mais iguais. Eles sabem dar valor ao que não há. Se não há, há-de haver um dia. E a linha do horizonte que lhes permite sonhar com dias melhores é a mesma linha que regala os bonacheirões ricos com o último modelo de iPhone, a mesma linha que separa dos cruzeiros abarrotados de gente que se satisfaz no efémero e que valoriza ter o mundo como seu, o proprietário da empresa, dos funcionários, da faxineira e do jardineiro. Que esses não precisam de esperança, que carregam a ambição de serem melhores que os outros, nos seus chapéus de abas largas, que adquirem sonhos pesados e dormem como se fosse natural serem distinguidos nessa linha separadora. Hoje, enquanto o jornal é usado para palavras cruzadas, noutros lugares da mesma linha, a separação existe evidenciando mesas vazias e mesas fartas. Lixo de primeira e lixo de segunda. Os pomposos e paupérrimos idolatras do TER hoje têm o mundo só deles e não olham para o outro, no limite do horizonte. E silenciosos, os outros perguntam-se se não seria melhor servir no Natal a revolta dos dias tristes, a miséria dos bolsos vazios, gritar a opressão, como forma de garantir a sua saúde mental. E, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas, lá anda o sarapilheiro em volta do cartão para lhe darem uns cêntimos e o músico, de dedos cálidos na guitarra, o estojo aberto onde pendem umas moedicas que certamente farão jeito para um maço de cigarros e uma garrafa de cerveja, lá estão os homens de quépi a carregar malotes e malinhas para o hotel 5* e, ao fundo, o homem das cautelas, cheio de coragem a vender a sorte grande aos que vão tendo capacidade de aguentar um teto com mantas quentes e pagar contas fora de prazo, e sopa requentada e meia dúzia de euros para embrulhar um boneco e um carrinho aos filhos para que, ao verem o Natal nas televisões e nas ruas, não pensem que não são humanos, iguais aos meninos que nem ligam aos seus embrulhos porque têm mais do que precisam e pensam menos do que deviam, agarrados à nova PlayStation 5 que o consumo assim obriga. Atualizem-se de empatia e solidariedade para que o mundo seja mais do que uma cena triste o ano inteiro e só saibam o que o espírito de Natal significa um dia por ano. Este Natal alimentem o sonho de cada vez mais pensarem mais nos outros e doem o que não precisam. Não, não ponham ao lixo. Façam chegar a quem precisa. Todos nós conhecemos alguém que ia apreciar esse casaco, essa televisão ou esse pão de ló a mais que vai se estragar apinhado nos outros doces na vossa casa. Isto não é bonito. Isto não é humano.
Mudem as coordenadas e o mundo continua filho da puta. Mas não, não é o mundo. Somos nós.
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