Hilda Hilst

foto retirada da net





Vamo brincá de ficá bestando

e fazê um cafuné no outro
e sonhá que a gente enricô
e fomos todos morar nos Alpes Suíços
e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando?
Vamo brincá que o Brasil deu certo
e que todo mundo tá mijando a céu aberto,
num festival de povão e dotô?
Vamo brincá que a peste passô,
que o HIV foi bombardeado com beagacês,
e que tá todo mundo de novo namorando?
Vamo brincá de morrê,
porque a gente não morre mais
e tamo sentindo saudade até de adoecê?
E há escola e comida pra todos
e há dentes na boca das gentes
e dentes a mais, até nos pentes?
E que os humanos não comem mais os animais,
e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás?
E que a alma é de uma terceira matéria,
uma quântica quimera,
e alguém lá no céu descobriu
que a gente não vai mais pro beleléu?
E que não há mais carros, só asas e barcos,
e que a poesia viceja e grassa como grama
(como diz o abade),
e é porreta ser poeta no Planeta?
Vamo brincá de teta
de azul de berimbau
de doutora em letras?
E de luar? Que é aquilo de vestir
um véu todo irisado e rodar, rodar...
Vamo brincá de pinel?
Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?
Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?
nave ave moinho e tudo mais serei
para que seja leve meu passo em vosso caminho.*
Vamo brincá de autista?
Que é isso de se fechá no mundão de gente
e nunca mais ser cronista?
Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.

* Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959.


in Tô sô, Crónicas, Correio Popular, Campinas, SP

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