Mia Couto
foto retirada da net
A dança do peixe-voador
Oceano Índico, Janeiro de 1560
" Minha cara Dia
Escrevo na penumbra quase total do porão onde me
aprisionaram. O escuro até me ajuda: afinal, esta
carta é um adeus. Ou quem sabe, um agradecer aos
deuses? Navegamos entre perigos e incertezas.
Salvámo-nos de fogos e tempestades.
Contudo, esta viagem não se está fazendo entre a
Índia e Moçambique. É sempre assim: a verdadeira
viagem é a que fazemos dentro de nós.
Há ondas movidas por anjos, outras empurradas por
demónios. Quem conduz o barco, porém, não é o timoneiro.
Quem guia o leme é a Kianda, a deusa das águas. É ela que
viaja no quarto do padre. É ela que está dentro da escultura
da Virgem. Eu notei logo à saída de Goa, quando a estátua
resvalou e tombou nas águas. Quando a olhei de frente
confirmei que era ela, a Kianda: os cabelos, a pele clara, a
túnica azul. O que sucedeu é que a nossa deusa ficou
prisioneira na estátua de madeira dos portugueses.
Libertar a sereia divina: essa passou a ser a minha
constante obsessão.
Eu lhe mostrei na noite em que fizemos amor:na popa da
nossa nau está esculpida uma outra Nossa Senhora. Deixo
essa para os brancos. A minha Kianda, essa é que não pode
ficar assim, amarrada aos próprios pés, tão fora do seu
mundo, tão longe de sua gente.
A viagem está quase terminada. Daqui a dias chegaremos
a Moçambique, os barcos tombarão na praia como baleias
mortas. Não tenho mais tempo.
Vão-me acusar dos mais terríveis crimes. Mas o que eu fiz
foi apenas libertar a deusa, afeiçoar o corpo dela à sua forma
original. O meu pecado, aquele que me fará morrer, foi retirar
o pé que desfigurava a Kianda. Só tive tempo de corrigir uma
dessas anormais extremidades. Só peço que alguém mais,
com a mesma coragem que me animou, decida decapitar o
outro pé da sereia.
Agora já não tenho medo nem de morrer nem de ficar morto.
Foi você que me ensinou: a melhor maneira de não morrer
queimado é viver dentro do fogo.
Adeus."
in O outro pé de sereia
A dança do peixe-voador
Oceano Índico, Janeiro de 1560
" Minha cara Dia
Escrevo na penumbra quase total do porão onde me
aprisionaram. O escuro até me ajuda: afinal, esta
carta é um adeus. Ou quem sabe, um agradecer aos
deuses? Navegamos entre perigos e incertezas.
Salvámo-nos de fogos e tempestades.
Contudo, esta viagem não se está fazendo entre a
Índia e Moçambique. É sempre assim: a verdadeira
viagem é a que fazemos dentro de nós.
Há ondas movidas por anjos, outras empurradas por
demónios. Quem conduz o barco, porém, não é o timoneiro.
Quem guia o leme é a Kianda, a deusa das águas. É ela que
viaja no quarto do padre. É ela que está dentro da escultura
da Virgem. Eu notei logo à saída de Goa, quando a estátua
resvalou e tombou nas águas. Quando a olhei de frente
confirmei que era ela, a Kianda: os cabelos, a pele clara, a
túnica azul. O que sucedeu é que a nossa deusa ficou
prisioneira na estátua de madeira dos portugueses.
Libertar a sereia divina: essa passou a ser a minha
constante obsessão.
Eu lhe mostrei na noite em que fizemos amor:na popa da
nossa nau está esculpida uma outra Nossa Senhora. Deixo
essa para os brancos. A minha Kianda, essa é que não pode
ficar assim, amarrada aos próprios pés, tão fora do seu
mundo, tão longe de sua gente.
A viagem está quase terminada. Daqui a dias chegaremos
a Moçambique, os barcos tombarão na praia como baleias
mortas. Não tenho mais tempo.
Vão-me acusar dos mais terríveis crimes. Mas o que eu fiz
foi apenas libertar a deusa, afeiçoar o corpo dela à sua forma
original. O meu pecado, aquele que me fará morrer, foi retirar
o pé que desfigurava a Kianda. Só tive tempo de corrigir uma
dessas anormais extremidades. Só peço que alguém mais,
com a mesma coragem que me animou, decida decapitar o
outro pé da sereia.
Agora já não tenho medo nem de morrer nem de ficar morto.
Foi você que me ensinou: a melhor maneira de não morrer
queimado é viver dentro do fogo.
Adeus."
in O outro pé de sereia
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