Inês Pedrosa
Podemos amar no escuro, sim, podemos amar na luz sonâmbulo da ausência, podemos tanto que inventávamos Deus. Tu dizias que Deus era o teu personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que os personagens de ficção existem tanto como tu. Às vezes, muitas vezes, existem mais do que tu. Lê-me o fim da Ressurreição do Tolstoi, diz-me que a Maslova voltou a ser Katiucha, de vestido branco com uma fita azul, entre círios, na noite ardente dessa missa de Páscoa em que Nekliudov a amou na sua inamovível eternidade.
Lê-me os textos dessa Maria Zambrano que eu te ensinei a amar, diz-me que 'O coração é o vaso da dor' e entorna o teu sangue no meu coração morto que não consegue morrer. Ainda não aprendeste tudo, demorado amigo. Ainda não aprendeste a matar-me. Os outros arrumaram-me no cemitério luminoso dos telejornais, com loas à minha dignidade. Que a Fama lhes seja leve - cá estarei para lhes perdoar em paz esse minuto de glória. Fica tão bem no écran, a pena dos mortos. Porém, no fim desse breve espaço publicitário a que chama vida, todos virão aqui parar. O microfone em torno de ti: 'Sei que é um momento difícil, mas disseram me que era um dos seus melhores amigos'. Confirmaste: 'É por isso mesmo que não falo dela. Continuarei apenas a falar com ela'.
in Fazes-me Falta
Comentários
que nos prolongam a vista noutros entardeceres que não os nossos. Obrigado pela passagem por aqui.