Nicolau Saião




Pessoa Inúmero
Aos Irmãos de H.

O que me interessa em Pessoa (máscara)
seja ele Fernando, Alberto ou Álvaro
é o ar grego e geométrico da sua casa
- casa dos seus versos exteriores -
onde as plantas terrenas, totalmente terrenas
com que enfeitou os seus dias e noites
aguardam sonolentas no calor do dia a música,
as abelhas, a lenta putrefacção
da clara Natureza na noite nascente.
Parece que escrevia bem o inglês
(descobriram isso, embora não seja seguro
depois de falecer) tão bem que os rostos de
Tennyson, Shelley, Whitmann, Shakespeare
e alguns outros indistinguíveis vieram pousar
sobre o seu rosto engelhado:
numa aldeia galesa os habitantes julgam
recordar-se dum fantasma de gabardina
que numa tarde foi segundo consta avistado
por velhos, crianças e amáveis mulheres
andando entontecido pelas ruas sem destino
sombra aqui, sombra acolá
- o que era, aliás, apenas fingimento.
Por cá evidentemente sua-se de novo
o ranho, o esperma e o sangue dos poetas
(carrascão, ginjinha, uísque e soda?)
a sério e a brincar o que dá jeito expressão serenidade.
Algures, num jardim real, o neófito agoniza
ombro com ombro, barba com barba
para que a chama da candeia luza ainda
numa rua onde nunca choverá.
Algures, um laranjal incendeia-se de repente
e as aves partem em bando
mas já frias como dobrada à moda de nenhures.
Numa sala um gato absorto olha o mostrador dum relógio
olha sem entender e numa certa janela
um lenço acena de vez.
E a figura de arame de Pessoa (máscara)
dentro dum automóvel de brinquedo
na velha estrada de Sintra que não existe, nunca existirá
- e por isso, ó minha alma, é bem real -
despenha-se explodindo no coração
do Mundo (ausente).


in “Palavras – sete poetas portugueses contemporâneos


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