As mortalhas ilusórias
O adulto da caverna recupera a criança (in)terna
Ela era, aparentemente, uma amálgama de pele, pernas e braços, sorrisos e olhos brilhantes. E ossos bem delineados pelas omoplatas, sabia sorrir como ninguém, as maçãs do rosto bem salientes e havia quem dissesse que quando sorria, as suas maças de rosto abriam dois buraquinhos, um de cada lado e trazia algumas sardas que, quando era menina, lhe haviam dito que eram picadas de mosca que nunca água nenhuma foi capaz de lavar. E tinha uma fortaleza maior que as amuradas dos castelos erguidos para defender dos inimigos, as cidades. Ela era uma cidadela.
Cheia de sonhos de menina e letras e figuras geométricas que se espalhavam entre as espargatas que fazia e as obrigações diárias. Sabia mais do que dizia. E, quando sozinha, falava e cantava para os amigos imaginários, assim chamavam (a)os que só estavam presentes para ela, com ela, que mais ninguém via nem ouvia, eles entendiam-na bem.
Os sonhos dela eram muitos e todos cheios de animais e natureza. Não havia nela senão duendes e elfos, estrelas e borboletas que cresciam entre papoilas selvagens e margaridas, malmequeres e hortelã pimenta.
O amor era a sua maior espada, couraça, que a mantinha protegida contra os males que o mundo tinha e que ela sabia existir. Era com esse amor que ela se protegia de tudo e de todos que não a conheciam. Nunca a conheceram por dentro. Por dentro, entre artérias e sangue, por entre pulmões e sinapses, não lhe sabiam mais do que ela aparentava. Podia ela atirar-lhes analogias, paralelepípedos ou poesia? Eles jamais a compreenderiam.
Crescera com a estrela da sorte na testa, com o unicórnio por companhia e, claro, com os amigos que ninguém via.
Já mulher, perdera tudo, entregara ouro aos bandidos, se desfizera, se desconjuntara, acreditando na sombra, na mentira pregada para a aniquilar.
Num belo dia, ao invés de sair fora, ela entrou para dentro, o seu jardim secreto intacto lhe devolveu tudo o que julgara perdido e o amor assombrou-a, como só os milagres conseguem. Ela festejou a reconquista de si mesma, tão imprevista quanto as dores que lambeu e curou. E nessa mesma altura, substituiu a sombra pela luz, a mentira dos outros pela sua verdade e a doença do mundo pela cura.
Então, pôde entender que podemos ser contagiados pela tristeza alheia e isso chamava-se empatia, mas não curava, ao contrário, aumentava a agonia. A não ser que sendo parte do processo de arte, pudesse transmutar essa tristeza em alegria. E que os seres humanos, equivocados pelas aparências e pelas expectativas dos outros, vestiam peles que não eram suas, que cristalizavam em si o que os outros desejavam, tais eram as suas doenças internas.
Pretendeu, nessa altura, da alegoria da caverna de Platão a Musk, a ilusão dos mundos alternos, mostrar que cada um de nós atrai dois tipos de ilusão vs verdade: o medo ou o desejo. Se atrai o medo, viverá o medo, se atrai o desejo, viverá tudo o que se prende com eles.
Descobriu que o medo era ilusório quando se nasce com envergadura, com força e coragem de dizer eu sou. Descobriu que os desejos eram efémeros, tal como o medo, menos malignos que este, mas igualmente superficiais e temporários. E entre essas duas vertentes, encontrou a verdade de cada um. Todos nascemos com uma verdade, a do eu sou, a de quem eu sou, a de quem eu sou dentro da verdade do eu sou dos outros. E foi aí, nesse equilíbrio, nesse caminho do meio que se recostou. E muitos dias e muitas noites, por lá ficou, até se inteirar. O caminho do meio tem que ser revestido de luz e sombra e também ele necessitava de equilíbrio.
O equilíbrio era feito de muitas coisas, de muitos pensamentos e atitudes, de muitos defeitos e virtudes, de silêncios e música, de critérios e ideais, de fé e de algumas crenças. E descobriu o renascimento. E a morte. E que ambos eram válidos e se encontravam sem se anular. Que até podiam se acrescentar.
E quando saiu da "sua caverna", olhou por cima, como se fosse uma águia ou condor, um mocho, uma ave de rapina e viu com espanto o que já vivera em menina, a ilusão dos outros não lhe cabia e nem lhe dizia respeito.
Foi quando encontrou dentro de si, nas proporções corretas, a justiça e o altruísmo. E o livre arbítrio dentro da "prisão" existencial. Se não escolhes, outros escolherão por ti, e mesmo que não escolhas, a tua escolha, a de não escolher te trará consequências e que as consequências podem ser igualmente ilusórias e/ou igualmente positivas. A questão é: a quem entregas tu o teu poder do eu sou?
E nesse dia, a caverna passou a ser o oásis do deserto da humanidade. A meditação e a criatividade aumentaram a coesão do eu sou. O amor despoletou o restante em si mesma.
E ela decidiu que não era razão nem paixão, nem arma e nem destruição. Nem culpa, nem vítima e nem ré. E essa foi uma escolha sábia.
Era paz entre os demais.
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