O jogo perigoso das aparências

 


Isto parece ser reencontro, mas pode ser despedida


Aparências e factos: eu ou tu


A lei da sobrevivência obriga-nos, tantas vezes, a fazermos coisas nas quais não nos reconhecemos. Por vezes, estamos a tomar o nosso café, e julgamos o que nos chega de sensorial e fazemos analogias e baseamos as nossas impressões na aparência. E até nos convencemos de que a verdade absoluta joga com a nossa verdade. E temos mesmo razão. Somos aquele espetáculo.
Para quê pensar mais no assunto? Eu falei, tá falado. Aquele homem é um psicopata, aquele pai é um cristo, a vizinha de cima bate mesmo mal. E tantos outros julgamentos. E chegamos à conclusão, ou a essas conclusões quando pegamos na teoria pirética de que, quem está de fora avalia bem melhor os problemas. Pimenta no cú dos outros é refresco no nosso, right? Pois.


O negro passa a correr com um bebé de 6 meses ao colo. Não há análise de sentimentos e nem de razão. Existe um facto. Ele passou aqui a correr, o bebé parecia um embrulho de café que compramos na brasileira, não vimos o rosto do pequeno ser, mas podemos adivinhar que estava mal, ou inocente. 
Quase caiu em cima de nós, aquele homem agressivo e alto. Por pouco não nos magoou. Quisemos perceber a situação, mas não houve tempo.
E continuamos a jogar o monopólio, naquele jardim, agora outra vez calmo, não fossem os zumbidos das moscas e os que fazemos durante o jogo.
Eu quero comprar o Rossio. A banca emprestar-me á dinheiro?
Adiante.
O bebé, soubemos no dia seguinte, era dele. Tinha na traqueia uma tampa de caneta Bic a asfixiá-lo. O pai que julgava estar a perdê-lo venceu os limites de si mesmo e saltou um muro altíssimo, nem ele acreditava ainda, mais de dois metros e não foi de costas. Afinal, ele não estava a roubar o bebé. Mas a ir contra a vida que lhe roubava a motivação de viver. Naquele momento ele não viu obstáculos. Viu apenas um centro de saúde do outro lado das casas.



Foram dar com ele num estado lastimável. A cabeça havia sido decepada. Sabia-se quem era pela tabuleta do seu escritório e até pelo cheiro de cachimbo que infetava o ar, misturado agora com o cheiro nauseabundo do sangue. Levara 79 machadadas. Quem contara as mesmas? O perito de medicina legal? O bófia? Estaria envolvido com a mafia? Ou contra a mafia? Pois, o facto era que ele jazia na cadeira onde dera imensas ordens, onde contratara tanta gente e onde, por certo despedira também.
As opiniões dividiam-se: era bom homem contra era um crápula.
Havia favorecido patifes vida fora e desempregado homens humildes que dependiam do salário que pagava para sustentar a família. Para levar pão para uma mesa. Mas, tanta gente chorava junto ao escritório onde o seu corpo era uma massa desbotada de vermelho e farrapos azuis.
- Não somos mesmo nada. A não ser este sangue e o que dizem de nós.
De quem fomos.
Pois. Pois. A minha opinião não contava nada. Era irrelevante. O homem morto continuava ali, quieto e irreconhecível. A mão direita não aparecia.
E do outro lado da cidade, um homem anónimo entregava-se à polícia, desesperadamente calmo. O machado ensanguentado era o seu último bilhete de identidade. Toda a sua vida fora um pacificador. Uma vida que já não era vida. Tivera que lutar tanto para conquistar o que tinha, mas hoje dava-se conta que não tinha nada. Nem mesmo a si. Quando ele, o demónio, começara a massacrá-lo, a retirar-lhe o que era seu por direito, achava que seria uma questão de tempo para ver que o que estava a fazer era injusto e remediar a situação, pedindo desculpa.... Desculpa, sim, acreditava que sim.
Ele tornara a sua vida num inferno nos últimos 3 meses. Roubara-lhe a luz, a água, a saúde, a comida, a vontade de viver. Até a esposa que ele amava. 
Sentia-se um farrapo humano. E num ímpeto (raiva acumulada de quase 15 anos) pegara no machado. E entrara no escritório do filho do seu grande amigo, já morto há algum tempo. E esquecera-se de todo o resto. Porque também ele estava morto. Há muito.

O guisado tinha o sabor dos velhos tempos. Lembrava-se muito bem da mãe à volta do fogão, no avental, sempre o mesmo avental, chamando:
- Vá lá, está tirado o almoço.
Uma mesa sempre farta, uma geleira sempre abonada. Uma casa confortável. Um bom carro na porta. E a sua ambição de viajar. Sem limites.
Lembrava-se com facilidade dos amigos, dos bons momentos. Mas tudo era já e só lembrança. A sua carteira de documentos velhos já não era a sua, mas a de um homem que lhe deixara junto com ela algumas notas e o aconselhara a emigrar.
O seu boné velho era de um clandestino. De um mulato ilegal no país. Os seus suspensórios os do seu velho pai. Falecido há muito. E a mãe seria viva ainda? Usaria, mesmo carregada de rugas e cabelos brancos, o mesmíssimo avental para fazer aqueles guisados?
Um eczema enorme crescia nos braços. O couro cabeludo em ferida. Umas marcas profundas; mais fundas que cicatrizes físicas que lhe inundavam a alma. Tinha fome. Tanta fome. Saíra do seu limite territorial há mais de 20 anos. E tudo o que ele sabia era que tinha fome. Doía-lhe a fome que sentia. Queria lá bem saber da poesia, dos cafés ou dos cigarros que outrora fumara. Queria lá bem saber dos espaços lúdicos onde antes entretinha o seu espírito. Só queria uma malga de sopa. Quente. Podia até ser de pedra. O rosto da sua doce mãe vinha-lhe à memória.
-Mãe, tenho fome dos teus guisados. Tenho tanta fome.
Entrou no restaurante, pedindo caridade aos olhos que tinham alma. Mas não havia olhos almados. Apenas rostos indiferentes que se lhe fugiam.
Medrosos de serem lidos pelos dele. Quando se tentou aproximar do dono do restaurante que deduzia ser o senhor gordo e abastado dentro do balcão, levou um tiro. E morreu, ali, entre gritos e estômagos cheios. Morreu-lhe a fome também. E a fome dos outros que ali estavam com um prato na frente, também morreu, junto com a fome dele, com os gritos que dera. Morrera, esfomeado.

Morre-se e vive-se em contextos inimagináveis.

Não, não é fácil sobreviver. Nem escolher. E acima de tudo, somos animais de impulsos. A razão uma ferramenta conquistada no tempo. Reutiliza-se quando assim dá jeito. As verdades são questões mentirosas se analisadas fora de contexto, fora de tempo, fora de esquadria.
- Deus, arranja-me uma vida com verdade reconhecida aos olhos de todos. 
Inventa-me dias claros e sentimentos serenos. Inventa outro planeta, outros seres mais humanos. E já agora recicla-me.

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