Nascer todos os dias dói


Kroyer, Mulheres e pescadores em Hornbaek,1875

           

O título é em homenagem a Pedro Paixão, como contraponto e continuidade ao seu "Viver todos os dias cansa".

Nascemos quando rasgamos o ventre da nossa mãe e essa é só a primeira tareia, porém a mais dolorosa. Por isso, nos é permitido esquecer essa dor. Já ouvi muitas histórias sobre partos e sobre dores. E sobre partos com dor e sem dor da parturiente. Uma delas conta a dor da criança. O que é curioso na dor do parto é que só é esperada e presumida a dor da parturiente e nunca do nascido. E para poupar a dor às mães, até se inventou a epidural. E para diminuir os riscos do nascido, a cesariana.  

A história que trago para vos contar começa com o rebentamento das ondas de espuma contra as rochas no mar. A tempestade. O sacolejar das redes e boias. Mas é sobre a vida, a dor e o refinamento que leva à libertação alcançada, quando nos é permitido voltamos a ser crianças. E voltar para casa.

Em casa, as mulheres encolhem-se pelo bravio do mar, pelos maridos na pesca, pelos desaparecidos e engolidos pelo oceano imenso, pelos triângulos das bermudas em cada casa de viúvas de pescadores. Curiosamente, as mesmas que antes de enviuvarem, teciam as redes de esperanças e nessas alturas, tentavam com minucia diminuir o tamanho dos buracos, para que peixes graúdos lhes pudesse salvar a mesa de jantar para um mês inteiro. Teciam juntas, oravam juntas enquanto costuravam e remendavam de novo as redes de pesca. Contavam juntas a ausência dos maridos e quando a madrugada chegava, eles partiam com lanternas e arpões e lanças e outros adereços, elas vinham à praia, ajudavam a empurrar os barcos, ralhavam medos e exigiam promessas de volta! E pediam a Deus que os devolvesse intactos e abonados de saúde, repletos de peixe nas embarcações diminutas que, corajosas, se faziam ao mar imenso. Muitas choravam juntas e pressentiam juntas a viuvez a toldar-lhes o futuro. Muitas! E procuravam saber, quando se aproximavam tempestades se era a embarcação comprometida a deles, quantos se adivinhavam salvos, quantos o mar engolia. Eram presságios e esperanças. Dilúvios e sustos e uns desvaneciam-se como o nevoeiro que os rasgava da luz e outros erguiam-se, gritavam que intempérie nenhuma os comia. No corpo de muitas mulheres, já se adivinhavam crianças que nunca conheceriam o rosto do pai, órfãs do mar! Essas senhoras bravas iam reclamar às ondas, a Poseidon, a devolução do morto para que, pelo menos o pudessem chorar. E o mar tragava-os e quantas vezes não os devolvia, arrastava-os para longe, tão longe que mesmo com esperança e necessidade de corpo para fazerem luto, esses olhos lanterna das mulheres do mar não conseguiam alcançar. A dor era insuportável, não poderem despedir-se do olhar desaparecido, do pai do tio, do avô e do irmão! E se o mar era glorioso e abundante, era, ao mesmíssimo tempo, castrador e diabólico, um ladrão de almas cantado pelos hinos da humanidade, mundo afora, história adentro. A dor refina a alma. A alma apazigua perante os factos consumados. Dizem. Eu digo que quando uma mulher de pescador ou outra qualquer parturiente tem a sorte de ter um farol na tempestade do rebentamento das águas, por mais dor que haja, nas contrações entre as ondas que vêm de sete em sete crescentes e as dilatações do ventre do mar, a dor é sempre violenta. Nascer é morrer de outra forma. A dor é tão violenta, a dimensão é distópica. Da luz, descemos às trevas, num ápice. E temos que aprender a respirar dentro de água no ventre e respirar fora do ventre sem água. São violências que tornam a vida algo magnifico e impossível de explicar, a não ser quando traduzidas pela explosão do amor, da reunião de um óvulo e de um espermatozoide. Essa é a festa, onde temos direito a fogo de artificio, a música e dança, a esperanças e desenhos de construções entre os soluços da vida que se não deixa adivinhar e as risadas que nos permitem sonhar utopias e ideais. Tomara que o mar esteja calmo, tomara que eu chegue à praia, tomara que eu saiba respirar e não entrar em pânico, tomara que a vida não seja, em si mesma, uma doença adiada, tomara que eu aprenda a cair e a levantar-me. Nasces num momento e nesse único momento em que te dás conta que já não há luz e tudo começa de novo, ainda vais saber se és um milagre vivo ou um nado morto, se és uma onda que rebenta ou uma rocha que apanha, se és um pescador próspero ou um corpo à deriva.  Sempre me conheci apaixonada pela vida e pelos seus mistérios. Sempre me fascinou o mar, no seu todo. Na acalmia que me obriga a ir dentro, na tempestade que me faz reconhecer o fora. Ir dentro é conhecer-me, vir fora é reconhecer-me nos outros. Nasci de um ventre em tudo igual aos outros. Violentamente, rasguei caminho pelas ondas do líquido amniótico no final de algumas luas, e antes das luas, estava envolvida em luz, as ondas do mar da minha mãe atiraram-me contra as paredes da rocha do seu ventre tantas vezes, e outras vezes que, mesmo me tendo sonhado, desejado, me magoou e me expulsou. A violência começa quando nascemos e nos é permitido tudo esquecer. Ou enlouqueceríamos. Tal como as batalhas espirituais constantes entre os nossos demónios e os nossos anjos. Se pudéssemos ver essas batalhas espirituais, da mesma forma que olhamos o mar ou uma mulher grávida, ou um café tomado na beira da estrada ou um incêndio ou uma despedida breve sem adeus definitivo, morreríamos novamente. Emocionalmente, não estamos preparados para a violência. E o recalque oculta, simula, escamoteia, empurra, faz de conta, mas não se iludam. A dor é sempre uma forma de violência, uma lição a aprender, o fogo a purificar, o joio a sair de junto do trigo. A vida é magnifica quando temos a consciência que a felicidade bem como a esperança são os paliativos para aprendermos que não viemos para um infantário. O mar cantado dos poetas, refrescante dos banhistas é o mesmo que enterra pela submersão os corpos que os cantam, sobretudo homens que vivem perigosamente no abismo, entre estados de consciência transitórios. 

A parturiente entre contrações e dilatações, lágrimas, gritos e ansiedade vê o fruto maduro com olhos e braços e reconhece-se nele, ama-o já o amando dentro do ventre, e a vida toda lhe mostra que esse menino que chorou ao nascer e que é já um homem que se faz ao mar, como o pai, será sempre o seu menino. Não sabe ainda que aquele menino não é seu, que aquele ser não veio para cumprir uma vida que ela escolhe e deseja para ele, mas a sua própria vida. E vê-o crescer e ele pode querer o mar ou rejeitar inteiramente o mar. Rejeitar querer filhos, rejeitar trazer órfãos, rejeitar aquelas dores, por trazer dentro dele outras dores que escolheu viver antes de rebentar o ventre e se esvair de dor num apgar qualquer, num perímetro cefálico com registo único e intransmissível. Noutro perímetro cefálico que não igual ao seu, noutro oceano que não o que os outros desejam para ele. E crescem e quando obedecem aos seus corações, cumprem-se, envelhecendo e aprendendo e ganhando bagagem para um dia, quando já tiverem mais sabedoria que força ou reflexos, terem a coragem de pegar no livro do "deve e do haver" e fazer as contas, os caprichos, os sonhos e as frustrações que carregaram em si e quando já não têm medo do escuro ou da solidão, quando já se conhecem por dentro e já se reconhecem nos de fora, aceitam poisar o caderno dos deveres e começar devagarinho a despedir-se da vida, dos outros, das coisas, da ignição e é quando descobrem que afinal, sempre estiveram sós, sempre aprenderam as lições, sempre cruzaram oceanos e fizeram escolhas sós, tal como quando chegaram a nado, sem fôlego, roxos, de peles engelhadas e de aprendizagens sucessivas e constantes. Aí, nessa altura, se tornam introspectos e contemplativos, tolerantes e compreensivos, consigo mesmos e com os outros. E voltam a ser crianças, porque o pior foi quando chegaram! Partir já é o esperado e começam, nessa altura sábia, a viver o aqui e agora, a esquecer o que foi e o que será, a deixar o relógio e o calendário, as expectativas dos outros e a necrologia dos jornais, e nessa altura em que já se foram mais os que os conheceram do que os desconhecidos, que sentem vontade de voltar a brincar, não às explosões do amor, mas ao aqui e agora. E passam a apreciar devidamente a vida, as suas contingências e absolutismos, as suas escolhas e lentidão, o marulhar do mar e dos seus corações, e quando tal acontece, que o bulício e as palavras cruzadas, os amigos e as comezainas, a escravidão e o trabalho, a ilusão e as fantasias de criança já só os fazem sorrir, então esses bebés grandes estão prontos para a partida. Que, se realmente tiverem aprendido as lições e com as suas vidas somado mais do que subtraído em termos de amor, o milagre acontece e o corpo sem dor larga a anima junto ao mar, de sete em sete ondas, uma delas os virá buscar, e já não importa se o mar que os leva está bravo ou calmo como um lago, porque já sabem nadar dentro e fora de água e voar dentro e fora da alma. A criança larga o corpo idoso, com prazo expirado da sua validade e liberta-se e a dor só fica para os que ainda os têm na memória, até serem apenas uma lembrança, uma fotografia numa estante, depois nem isso, como dizia, e muito bem, Telomar Floreêncio.

E o mar que é só o início da tempestade, a partida para uma jornada, torna-se o reflexo do céu que é ilimitado para quem sabe voar.

E só as crianças e as aves do céu voam. Os outros sonham. As primeiras porque se recordam desse tempo sem roupa, sem corpo, as segundas porque já nasceram abençoadas a fazê-lo em liberdade, e os adultos porque vivem na ilusão da mortalidade e ficam retidas no passado por dor de repetição ou sofrem de ansiedade por receio de nova dor. O mar não tem medo. As rochas não têm medo. O medo mata mais do que qualquer guerra ou doença. 

A vida é um mistério repetido e o outro lado a liberdade do cativeiro. 

A vida não é um infantário nem um recreio. Não, a vida não é só dor, mas não é só passeio. Os homens do mar sabem disso. E as suas companheiras também. 

Os bebés sentem-no, mais do que tudo e do que todos!

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