Tempos verbais e EQM (experiências de quase morte)
Eu olhava do alto para baixo e não havia estranheza alguma. A luz tomava-me pela alma toda, beijando-me, amando-me num abraço sem braços, num beijo sem boca, num amor sem rosto e quanto mais eu me sentia amada, menos vontade tinha de olhar o meu corpo lá em baixo, naquela cama alta, onde as minhas pernas de menina de quase treze anos sequer tocavam o chão. Todos os móveis eram antigos e pesados, de tampo de mármore, todos os acessórios, candeeiros e bustos em tripés de louça igualmente seculares e pesados, carregando a memória da família em cada adereço. Era o meu quarto. O guarda-vestidos de quatro portas, imenso e medonho, porém era esse móvel proporcionalmente maior que me salvava dele. O "ele" que me tinha trazido a esta experiência de luz, de deus, de mim noutra dimensão. O meu corpo jazia frio, cada segundo mais frio e patético naquela cama imensa. Recordo a vassoura num dos meus braços e o corpo disposto bem no fundo e a meio daquela cama de casal onde eu dormia e me protegia desse homem diabólico que já me havia violado os diários que eu escrevia. Todos os de casa sabiam que passava o meu tempo entre ler e escrever e era nesses diários infantis, com chave que eu guardava no peito, dentro dos meus soutiens infantis, para que ninguém ousasse ler o que pensava e escrevia sobre a minha vida e a dos meus irmãos. O inferno que vivíamos naquela casa onze nas Vivendas S. José, da rua 5 de Outubro, em Ermesinde. Não sinto necessidade de revisitar as memórias para ser precisa nos detalhes, pois estas memórias nunca me abandonaram, pelas mais variadas razões. Alimentava-me mal, na verdade, odiava comer tantas vezes ao dia e aquelas refeições que os adultos pareciam gostar muito e como já não havia o meu pai, para me "obrigar" a alimentar, tantas vezes, às escondidas dos adultos, me desfazia delas, umas vezes para os cães, galinhas e patos, no nosso quintal, outras tantas pela banca da cozinha e outras mesmo pelo vaso sanitário do w.c. O que vivera fora uma paragem cardio-respiratória por esgotamento, falta nutrição correta e doença do coração.
O diabo, é assim que continuo a chamar aquele homem medonho que vivia com a minha mãe e que tentava substituir-se ao meu pai, erro crasso dele, tinha ousado rebentar-me os diários, uma vez que nunca tinha encontrado as chaves deles. E atreveu-se a lê-los e deixei de escrever nos diários. Passei a escrever em folhas soltas que, após a escrita, as amarrotava e atirava para cima desse movel alto e enorme a que chamavam guarda vestidos e que deixava de estar visível, visual ao mesmo, por mais que procurasse, já encontraria apenas o lugar vazio pois as folhas caíam todas atrás do móvel, tal a minha preocupação que ele nunca as encontrasse. Os ratos que haviam entrado pela janela da dispensa, haviam entrado no quarto e impediam-me de dormir e davam-me medo, aterrorizavam-me, comiam as folhas de papel que eu atirava para detrás desse móvel. Tinha-me queixado à minha mãe do pavor de dormir pelo barulho que os ditos cujos faziam durante a noite, assim a Lurdes tinha ficado encarregue de ajudar-me a descobrir onde andavam os bichos e ela era magra como eu e pouco mais velha do que eu, acredito que, apenas mais seis anos e tinha-nos sido extremamente difícil arrastar aquele peso morto mas diante do terror de ter visto um rato à minha frente e que a empregada conseguiu apanhar, deitei-me naquela cama imensa, entre terror, exaustão e desistência e deixei-me morrer. A minha saúde sempre tinha deixado a desejar. Tive reumatismo e era feia de magra, escanzinada ao ponto de me dizerem muitas vezes que, se eu fosse a Guimarães, onde havia uma fábrica de facas, ficariam lá comigo para dos meus braços e pernas fazerem cabos. Gostava de comer pão, cereais e fruta. Doces e toda a porcaria, mas comida e sopa não. Assim, para além de me alimentar muito mal, escapando facilmente sem vigilância dos adultos, também passava as noites acordada, colocando peças de roupa por cima do candeeiro que colocava criteriosamente no chão e lia noite dentro, até chegar ao the final end do mesmo e sabia que, se a minha mãe durante a noite se levantasse e visse a luz acesa, através da frecha da porta, me apagaria a luz e ralharia comigo, pois tinha aulas no dia seguinte e precisava descansar. A minha mãe era enfermeira num hospital psiquiátrico e o diabo com quem ela dormia trabalhava nos STCP, creio que era chefe do gabinete dos motoristas e fazia as escalas de serviço dos motoristas. Sei que era medonho para mim e para os meus irmãos, não só por tentar substitui-se ao meu pai que, por si só já era grave para nós, mas porque tentou abusar de mim depois de ter lido o meu diário a primeira vez, tentando obrigar-me a beijá-lo na boca e eu, por ter sido agressiva, pois defendi-me e fugi para a rua, tentou sempre que eu não contasse a ninguém. E muito embora tenha dito a mim mesma que o perdoei, desconfio sinceramente que nunca o fiz.
Com doze anos, comecei a fumar. Queria ser adulta rapidamente. O tabaco fazia-nos sentir adultos. Espantem-se. Não fui a única. Tínhamos a viver connosco uma empregada interna que, variadas vezes mudou de rosto, tal a nossa sede de mãe e pai. Cometíamos as mais diversas tropelias e selvajarias com elas, para que desistissem de estar connosco, acreditando que, assim, a mãe voltaria para casa, para nos amparar, dar colo, acompanhar, alimentar, enfim, para ser mãe. Desde Alice, a Edite, passando pela Rita, Luzia e Lurdes, esta última de Armamar, foram muitas a quem mostramos o nosso mau feitio, eu e os meus irmãos. E como mais velha, era também a mais responsável, assim me sentia, na obrigação de cuidar deles, do Ruizinho e do Antero. Quando esse demónio leu o que escrevi sobre o meu vizinho, o Raúl, o amor de infância cuja maior virtude era fazer-me corar só por existir e olhá-lo, que me roubou um beijo nos lábios com os meus onze anos, que roubei cinco escudos à empregada para comprar cigarros no quiosque da estação, cigarros esses num pacote vermelho e branco, trazendo somente 12 cigarros sem filtro e que morria, quase desmaiava quando eu, a Dores, a Virinha e outras colegas de escola fumamos no monte. Tal era a agressividade desse tabaco. E que escrevera várias vezes que a empregada, depois de saber que eu fumava e querendo ir namorar com o bombeiro neca para os Bombeiros Voluntários de Ermesinde, sem que a minha mãe descobrisse, me dava dois escudos, outra vez cinco escudos para que eu lavasse a loiça e estendesse a roupa, enfim, era uma troca justa, para mim, porque na altura queria fumar e só tinha essa forma de o fazer. Às escondidas. Fora de casa. Ou quando não houvesse adultos por perto. Assim, a minha saúde era pouco recomendável e fugia a dentistas, médicos em geral, nunca denunciei as minhas dores e, quando a dor, fosse de cabeça, de barriga, de dentes ou de qualquer outra natureza, assumiam grandeza, eu ia à farmácia do wc e fazia o que via os adultos fazer, usando antibióticos do tipo amoxicilina, analgésicos e outros. Cheguei a fazer isso tão sistematicamente que acabei por estragar vários dos dentes que me fariam mais saudável hoje.
Ali, naquele teto, sentia-me um balão, abismada e feliz, surpreendida e sem nem saber o que me estava a acontecer. Foram poucos minutos. Não posso precisar o tempo, mas recordo-o como algo fantástico e em simultâneo, terrífico e estive muito tempo sem contar tal experiência, com receio que me tomassem por louca e me prendessem no hospício onde a minha mãe trabalhava e depois não haveria ninguém que pudesse salvar os meus irmãos das loucuras desse diabo.
Compreendi, na altura que deveria ocultar tal experiência. Sentia-me exausta, infeliz e doente. Nunca o denunciei. Escrevia, ao invés de o confessar. O meu irmão mais novo sofria do coração, tal como eu, tal como o meu pai que partiu com trinta anos, mas o Ruizinho tinha a doença cardíaca mais grave de todos na altura, uma estenose mitral e aórtica (lembro-me de ter lido o resultado da autópsia dele, que partiu com onze anos, apenas). Assim, o meu irmão mais novo não era só meu irmão, era também meu filho (dizem que somos mães quando parimos os filhos, mas não, eu não o tinha parido mas fui mãe dentro do que pude porque me doía a sua fragilidade e a minha impotência, assim, acredito que somos mães quando temos as dores), pois a nossa mãe dedicava a preocupação dela às imensas doentes mentais do hospital onde trabalhava e acreditava que a empregada interna que tinha em casa a substituiria, não só nas roupas e nas refeições, quiçá também no amor de mãe que ela nunca teve, pois com dez anos apenas, já era órfã de pai e mãe. Assim, eu tentava substituí-la também nessa parte, de beijá-lo, lavá-lo, assisti-lo a vestir, a fazer os trabalhos de casa, a ralhar com ele. Havia um envelope que me pesava na consciência e que ajudou a que crescesse e fosse mais infeliz. Era um envelope branco sempre lacrado (o lacre era cor de vinho), e só podia ser aberto quando o Ruizinho, por mais uma perda sanguínea ou por qualquer outro problema de saúde, tivesse que ir para o hospital de S. João, pois o nosso cardiologista, Dr. João Vasconcelos, nem sempre estava disponível para vir a casa tratar-nos. Ainda hoje consigo tomar-lhe o peso desse maldito envelope que continha a documentação necessária do Ruizinho, dinheiro para a ambulância e para os medicamentos se fosse o caso de ter que os comprar na farmácia Mag. Todos receavam receber o meu irmão, todos receavam tratar do meu irmão, tal era a vulnerabilidade cardíaca que possuía. Um corpo de menino e um coração de um homem de cem anos, assim dizia o cardiologista. Era proibido de ser criança, estritamente proibido de jogar futebol, correr, andar de bicicleta, ir à praia, qualquer tarefa o deixava exausto e cansado. Tinha nascido com os dias contados e eu contei-lhos melhor que ninguém. De uma doçura que me rebentava por dentro, sempre com os seus pequenos braços à volta de mim e, quando era festa ou dia santo, nas folgas da nossa mãe, à volta do pescoço da sua mãe, qual anjo, com cabelos claros e cheio de caracóis, cachos pendentes que lhe emolduravam o rosto, os olhos redondos, castanhos e meigos como só ele e entendia tudo, aceitava tudo, hoje acredito que já possuía, também a sabedoria de um homem de cem anos.
O Ruizinho partiu quando eu tinha completado dezasseis anos, no dia dez de setembro de mil novecentos e oitenta e cinco, tendo nascido um ano antes do nosso pai partir, cuja data me é impossível esquecer também. Dez de abril de mil novecentos e setenta e cinco, antes das comemorações do final da ditadura do Salazar, dia esse em que plantámos árvores na escola primária da Costa e eu lhe dediquei a minha. Desconheço se ainda é viva a dita árvore.
A morte dos meus tocou-me e silenciou-me durante muitos anos, tempo esse em que guardei as dores para mim, como feridas que escondia, como fendas que não fechavam nem com álcool ou mercúrio. Hoje sei que receava que se falasse em tais debilidades, pudesse estar a arriscar perder o Antero ou a minha mãe. Tempos muito difíceis dos quais não me envergonho nem me orgulho, mas que ainda hoje, tal como ao envelope de lacre, lhe sinto o peso. Entendo que dor nenhuma nos substitui a alegria de sermos felizes e nem o contrário.
Quando me perguntava porque a minha família tão extensa nunca esteve presente para diminuir a nossa dor, desculpava-os, inventava mil desculpas, mas a verdade, a verdade mesmo é que viviam as suas próprias vidas, sofriam as suas próprias dores e, só quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro.
Quando tive o meu primeiro filho, o meu Rui Francisco, acreditem, tentei trazer à vida outra vez o meu pai Francisco e o meu irmão Rui, os dois de uma só vez, estourava-me no peito a alegria de trazer um dois em um que, bem feitas as contas na minha cabeça, eram três num corpo só, o pai, o irmão e o filho. Penso nisso e tremo e ainda bem que me perdoo pelos pensamentos e dores infantis que subtraí no parto. Nessa altura, antes de acontecer o seu nascimento, temi o pior. Voltar a sentir-me doente e exausta e sucumbir via experiência semelhante à dos meus doze anos, a partir sem sequer ver o rosto do meu menino. Assim não se passou.
Escrevo hoje para aliviar as dores que carrego desde tão cedo, as saudades que me sufocam dos meus ancestrais, em simultâneo para que, através das catarses da escrita, possa erguer a coluna vertebral que tenho e perdoar-me por não ter sido capaz de nos fazer mais felizes, a mim e aos meus.
Estou a atravessar o período mais difícil da minha existência, onde me entreguei ao sacrifício de isolamento parcial, evitando conviver e fazendo apenas o necessário para sobreviver até ao julgamento por violência doméstica que, entendo hoje, será o divisor de águas entre a mulher que sofreu e a mulher que larga as suas feridas todas, sem mais olhar para trás. Pode viver-se de memórias, mas também se pode morrer com elas, entaladas na glote e a mim ainda não me apetece morrer. E o Deus em mim me garante que saberei lembrar tudo isto sem a dor e o peso das expectativas dos outros sobre mim. Que eu mereço voar. A página virarei eu, não quero mais o passado dentro de mim. Na minha frente, ali, já ao virar da esquina terei o futuro que me aguarda e neste momento, coloco as devidas legendas e fotos do meu querido Rui, irmão, filho, anjo e amigo e guardo dez minutos do final do dia para mais um café e mais uma noite longa de leitura, o prazer dentro do agora, porque eu mereço o prazer sem dor.
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