Antes asterismo que populismo hipócrita ou da grosa da utilidade
No céu, cilindros semelhantes a fardos de palha, a novelos de cordeiros vão, ora se amontoando, ora se desvanecendo, consoante os humores e as correntes de vento laterais, em movimentos descendentes e ascendentes. Os navios mais próximos provocam sombra no mar, unindo-se, veleiros e navios de crude, cargas em contentores aprumados que fazem cama às ondas que crescem a ira nos intervalos.
Pareceu-me ouvir gritos de aviso, ao condutor do cargueiro que aguardava o barco guia, que o conduzisse ao porto, vindo munido da devida autorização para ancorar.
O negócio das transportadoras vai sofrendo impasses, não porque a guerra se veja próxima, mas pelos efeitos dela. Ouvi falar de sequestros em mar alto, como se quisessem dizer que os piratas voltaram dos séculos anteriores para ensombrar os oceanos, os seus negociantes e pescadores contemporâneos. Que é tudo business. Os piratas sempre existiram. O que mudou foi a forma de se apresentarem. Que agora usam colarinhos, gravatas, status sociais redundantes, pastas pomposas de pedigree comprimido, um zip com password, que carregam nos seus smartwatchs e laptops, códigos encerrados de vpns, onde se podem ler os seus nomes sabujos, ilustres, ou desbotados e difusos para não levantarem suspeitas, e os seus cartões de visita possuem resumês fabricados, de companhias que são fictícias, lavandarias eficazes, com múltiplos cartazes de distração, de offshores vastos, de empreendedores e de refratadas e cordiais simulações, a deixar atores e atrizes, encenadores e realizadores atentos, em laivos de sobeja baba, de tão grandes férteis e delirantes atores, sem qualquer experiência prévia. Recém-chegados aos holofotes. É a Cia munida de Inteligência artificial, as cias do mundo a compor-lhes os personagens, a produzir-lhes maquiagem em abundância, com o auxílio dos media.
O barco auxiliar chega, ditando manobras e os ouvidos dos navegantes escutam, obedecendo maquinalmente ao círculo de operações, repetidas, desde sempre.
E eu olho o visor das notícias, com o mar a galgar-me os pés, sem aviso prévio, que a autarquia de Loures se opõe à suspensão do despejo, decretada pelo tribunal e, depois de me erguer rapidamente, retirando os meus pertences ao predador oceânico, colocando tudo para dentro da toalha, já cheia de mar e areia, dando passadas em direção à parte superior do areal, dou por mim a desejar coisas menos boas a essa autarquia, às suas figuras que elencam a falta de empatia ao bairro de Talude, pois que sim, claro que sim, mas que mau e errado dar teto e retirar teto a quem não tem (alternativa), que a caridade é bonita quiçá nas igrejas, quiçá quando se deixam filmar num golpe de marketing oportunista de eleições e caça ao voto, mas é tudo uma agressividade, todas as barracas, talvez seja de lá que emerge a violência e a pobreza do mundo, uma ova! Recordei o dia em que vi o ainda presidente a ser enfrentado e apupado em dois momentos diferentes, e por duas mulheres diferentes, mas que quiseram dizer o mesmo, do problema do salário mínimo, do problema da habitação e dos alugueres, do problema da guerra que só interessa quando é económica e lhes beneficia a pasta, que refresco no cú dos outros é pimenta e, se a autarquia, só a título de experiência, assim, de forma voluntariosa, quisesse trocar os seus privilégios, os seus lofts que já foram lixos camarários mas viraram luxos acumulados em contas capitalistas, as suas moradias confortáveis, os seus aps nas Nações pelo Talude, seria como enfiar a Barbie e o Ken num sítio que eu não digo agora, porque sou uma senhora, e respeito, sinto por todos e todas as que dormem ao relento, não tendo soluções mágicas para situações medonhas e de limite, que nenhum dos que se opõe à dita suspensão de despejos (re)conhece, por a vida lhes ser, de alguma forma, honrosa, mãe e não madrasta.
E sento-me, outra vez na toalha, já molhada, com olhos marejados de indignação, que este refresco está a demorar a ser servido como karma a quem de direito e que, o que é de César será entregue com requintes, mas quantos mais cidadãos de segunda estivermos a alimentar, a fazer crescer, a defender, quanto mais segmentações e secundarizações permitirmos ao tecido social, mais crime, mais fome, mais hostilidades serão servidas nas mesas de cabeceira de quem não se atreve a semear, plantar e regar empatias. E colheremos todos o resultado do que tendes escolhido, em troca do que somos todos. Gente!
Vou ao princípio do mundo, que todos fomos paridos da mesma forma, meio homem e meio deus fodeu uma meia humana e meia deusa, e eis-nos arrogantes e soberanos, prepotentes e cheios de pneus de gordura, como se fôramos a última bolacha do pacote, de tão partida e molestada, e ainda a dar-nos para as finuras e esquisitices, e acharmos que a nós nada nos toca e eu, lá no princípio do mundo, peço aos deuses que vos toquem uma sinfonetta, uma marcha para começar a arrepiar os caminhos dos que "não se tocam", uma agonia para vos acordar a ignorância desse egoísmo abundante, essa protuberância que vos nasceu à míngua de humanidade, na ponta da baioneta da vossa opulência, petulância mal disfarçada, haja consciência, dos que calçam os seus sapatos confortáveis e não sabe o que é ter pés descalços, e isso definir se somos criminosos ou hipócritas. Só coisificar a nossa estupidez crescente e megalomaníaca. Ia falar de Kiron mas vou-me calar. Com esta treta toda, avariaram-me os fusíveis. Irrita-me a vossa corrupção, o vosso clientelismo, a vossa treta, o apanágio, a pedra que esconde a mão e até a inutilidade sobeja a que se dão, os vossos jantares e reuniões de assembleias e de autarquias, mas sobretudo, o que me irrita, sobremaneira, chama-se falta de civismo e humanidade. Quem vos pariu sabe da degeneração? Que suprimiram a palavra empatia por meia dúzia de blasfémias ocas e populismo útil aos extremos?
O que é necessário é saírem dessas cadeiras, que vos engordam o traseiro, que vos adiam a sapiência, vos acrescem ignorância, a discrepância entre ser e ter, para o lugar do atalho ao poder, e reinventarem alternativas sociais para o coletivo, não é retirar abrigo e deixar ao céu estrelado crianças e adultos em necessidade, o que se torna premente é saírem da frente, se não sabeis dar respostas a tão complicadas questões. Que largueis o poder ou o useis para o que vos foi proposto, engrandecer a sociedade com o vosso empenho e empatia. Quanto aos media, ide debitando os falsos fogos de habitação para os mais falsos shares da popularidade, que a luz nasce nos intervalos da escuridão e da vossa falsa-verdade, que dais voz a quem vos paga o soldo abundante. Que nasçam rebeldes na comunicação a que poucos vingam na independência e na clandestinidade.
Sem extrema unção, despeço-me. Faço votos para que sejais iluminados pelo espírito da humanidade. Por ora, ide chupar na terceira pata do demo que vos alimenta a fantasia. E acrescento-vos esta linha que vos retire o último véu ilusório. Não nos representais, sois meros chacais, que a nossa alma se não vende aos vossos insignificantes poderes, que estes se hão de finar. Que muitos de nós inverterá os valores, distorcidos, atualmente. Refinem-se para a cerimónia de Gaia. Pai, perdoa-lhes, eles nunca souberam o que fizeram. Os favores sempre se verão pagos num ad eternum conveniente, ou seja, até sempre. Eis o meu dedo do meio. E agora bolso, como o bebé que comeu demais, regurgito até vomitar a agonia dos meus iguais, aflitos. O que precisamos, meus filhos, da esquerda à direita, não é da vossa grosa, de favores e nem de politiquices, mas de ideais. E eu que vim do tempo dos jograis, vou-me aos Esquemas de Fradique, de Fernando Venâncio e de lá, retiro esta exposta digladiação: " Quem vê a morte à frente dos olhos não acha tempo para gracinhas."
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