Al Berto



enumero as coisas que me dizem de ti.
numa contagem decrescente.
hoje é o dia em que todas essas coisas falam.
um lírio um branco de céu onde
uma nuvem se desenha em fuga.
a luz que se detém numa só gota de orvalho.
um pensamento. o melro que lhe
debica a polpa. o rumor do mar nas areias da praia.
a pele recortada dos lapiás do corpo.
os arrumos que o tempo encontra em mim.
repouso agora num cálice de vinho ao final do dia.
olhando as cavernas incandescentes
que o lume abre na lareira da sala.
palavras e palavras. e tanto silêncio entre elas.
há, ainda hoje, um cheiro a pão torrado
misturado com o aroma do café com leite
e o som de um sino invocando o dever.
tudo isso implícito neste sentimento antigo
de que o mundo é incapaz de resistir
à força do vento que sopra.
olho todos os meus livros empilhados
por afectos na estante da sala.
num caleidoscópio de cores.
cheiros. texturas.
aí se apertam os pedaços da minha vida.
todos eles levam os sublinhados dos meus passos.
as personagens do assombro que me habitam.
como tu. talvez a solidão seja esse vento maior que nós.
sabe-se lá porquê acontece-nos.
a vida escorre-nos muitas vezes
por entre esses momentos de ausência.
tanto faz. a eternidade é um só momento.
e um nome. um só nome.
sempre tive medo que os outros me deixassem,
ou que eu partisse. tanto faz.
outra coisa, nunca soube dizer: amo-te.
pensei sempre que isso estivesse implícito,
algures na melancolia dos gestos.
é desse tempo, imensurável, que vem esta escrita.
nasceu silenciosa. sempre tive medo de partir sem asas.
sem que essa metamorfose lenta
e única me transfigurasse a face.
e me abrisse no corpo esse espanto.
sempre tive medo que os dias me esgotassem a vontade.
e me devorassem os olhos. mas digo de ti. e de mim.
e a vida acontece-me. ainda que silenciosa. ainda.
como a anunciada polpa sumarenta de um pêssego.
olho as paredes desta casa. desta minha construção
que desafia a ausência e digo-te.
a eternidade é um só momento. um só.
e um nome. um só. e assim basta. basta.

a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo
movendo-se por detrás das palavras (al berto)
não sei se a morte é esse esquecimento das coisas.
talvez. mas hoje é o dia em que todas as coisas falam.
e me dizem desse nome. dessa lentíssima metamorfose.
de asas. ou talvez mão. e outra mão. talvez apenas assim.
um imperceptível rumor contra a erosão do vento.
palavras que escrevo em busca
detecto e chão para os meus dias.
gestos erguidos na crosta da terra.
como lapiás do meu corpo. do teu corpo.
escultura das horas.
estas palavras, segredo-vos, são assim:
a lentíssima construção de um abrigo.
escrever-te continuamente...
areia e mais areia construindo no sangue
altíssimas paredes de nada al berto
ou esse abrigo de silêncio.
ou a polpa sumarenta de um pêssego
anunciada por um melro.
ou a distância encurtada entre uma nuvem e o céu.
que ela habita. sei lá se a morte existe.
ou se ela é esse esquecimento das coisas.
aqui te reclamo um nome.
aqui te recorto a negro contra a lisura branca dos dias.
e te arrumo. entre o sangue e a matéria gasosa do meu corpo.
como página decorada da minha vida.
na estante da sala. na incandescência do lume familiar.
da lareira da sala. aqui pertences.
marca que o espanto vai deixando acontecer nos meus olhos.

é. contra a ausência. é assim que hoje enumero
todas as coisas que me dizem de ti.
com a urgência de reter a memória delas.
para que o meu corpo não perca essa sombra
que se projecta quando caminho.
e silenciosamente asas me cresçam. antes.

Comentários

Anónimo disse…
tens uma publicaçaão de enorme qualidade! tentarei sempre voltar! abraço c.

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