Cristina Guedes
Estes factos são reais e foram-me contados pela tia Lurdes, tal como vos conto.
A tia Lurdes é tia de sempre, única irmã de mãe presente no casamento dos meus pais, bem como no meu batizado. Viveu sempre por aqui, em Penafiel, na entrada da cidade, no lugar das Figuras. Teve meia dúzia de filhos, porém perdeu um deles de uma forma estranha e medonha. O meu primo, ainda bebé de meses, após parto, repousava no seu berço de madeira, no quarto dos pais, ao lado da "loja" que era uma divisão onde se guardava a salgadeira, vulgo antigo frigorífico, onde se guardavam as carnes em sal, para conservá-las mais tempo, assim como, por cima da salgadeira ou do fogão de lenha, esticavam-se os salpicões e presuntos, caseiros, feitos pela família, aquando da matança do porco. Assim é, ainda, nas aldeias, no interior do país. A tia deixava o bebé depois de o amamentar e voltava ao campo, para apanhar erva e palha para pensar os animais, desde bois a ovelhas e porcos, pois assim se sustentavam as famílias por aqui. Creio que em muitas casas de lavrador, a coisa ainda se faz desta forma.
A tia corria para casa para amamentar o meu primo, já que o almoço era feito pelas filhas raparigas, aos rapazes tocava irem para longe, fosse para cuidar de outros campos ou para as feiras vender gado, cada qual tinha a sua utilidade na família e todos participavam para o todo. Era uma casa farta de legumes e carnes, embora não tivesse mimos de grandeza, como na cidade. Vestiam melhor ao Domingo, indo à missa e a refeição era mais cuidada, normalmente um assado de carne de vaca e arroz do forno, cozidos no forno de lenha, cuja tampa era fechada com trampa dos animais, o pão e a broa eram feitos e guardados para durar a semana toda, pois normalmente só se cozia uma vez por semana, o cozido à portuguesa era delicioso e abundante, e os frutos não faltavam pelas frondosas árvores dos pomares, bem como na fruteira na mesa da cozinha.
O meu primo bebé começou por adoecer com febres e sem engordar, cada vez mais magro, apesar de ser alimentado pelo leite materno, e a tia preocupada com o seu rebento, tentou ir ao médico.
A estranheza das suas febres associadas às feridas que a criança tinha ao redor da sua boca fizeram o médico dar voltas à sua cabeça. Foi questionado tudo, onde dormia o bebé, onde dormia a sua mãe, que pessoas cuidavam do mesmo enquanto a mãe trabalhava nos campos, que animais havia em casa, quem acedia ao berço do bebé, etc.
A tia disse que o médico prescreveu uma pomada gordurosa para colocar no bebé, nos lábios e nos contornos da sua pequena boca e estar atenta a tudo o que se passasse à volta da criança pequena que não havia meio de crescer, ao contrário, mirrava a olhos vistos.
A tia ficou várias vezes de atalaia ao seu pequeno rapaz, bem como os filhos mais velhos, até que um dia se descobriu o que se passava. Uma cobra enorme, assim que a tia Lurdes acabava de dar de mamar ao menino, se deslocava ao seu berço, entrava pela boca do rapaz e lhe retirava todo o leite materno. A descoberta foi bizarra e medonha, assustando toda a família. A tia falou com curandeiros que lhe disseram que no dia em que dessem cabo da cobra, ou salvariam o menino ou ele morreria. A coisa aconteceu e foi muito triste. A tia considerava estar a salvar o seu menino daquela cobra medonha. Sem conseguir controlar toda a raiva daquele bicho que tirava a saúde ao seu menino, pegou numa sachola e sem dó nem piedade, começou a dar cabo da cobra, martelou a sua cabeça, o seu corpo, até quase perder os sentidos, só queria ter a certeza que aquela serpente não voltaria a entrar no seu menino que não sabia defender-se. Poucas horas depois, perdeu o seu bebé. Levou muito tempo, até voltar a querer engravidar e, o tio António tinha que entender que mãe nenhuma aceitava que uma cobra desnutrisse o seu bebé, invadindo a sua saúde. Aos poucos, a vida voltava à sua normalidade, porém, esta história foi-me contada inúmeras vezes por ela, tínhamos uma relação bonita de tia e sobrinha e custava-me falar deste assunto, mas para a tia fazia-lhe bem deitar fora tudo o que havia guardado de dor e lamentos.
A tia já partiu, pela idade, pelo coração imensas vezes segmentado, mas ainda hoje é dia que aqui no sítio dos mochos tenho saudades da tia, que aparecia várias vezes, sem nem se anunciar e ficávamos numa alegre cavaqueira, a falar de coisas do campo e da terra e da família. Aqui fica mais um registo das minhas belas memórias e da saudade da tia Lurdes, uma mulher bonita, cuidada e autêntica, irmã da minha mãe.
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