Por Paulo Marques, José Cardoso Pires

 



DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO

"Dinossauro Excelentíssimo" (1972) é uma fábula satírica de José Cardoso Pires (1925 – 1998) que retrata, num tom irónico e amargurado, a vida de Salazar, a sua ditadura e o Portugal do tempo do fascismo. Um exercício de escrita em que o escritor denuncia, critica e mete a ridículo os vícios e defeitos de um velho dinossauro imperador que durante séculos dominou um reino com mão de ferro, o Reino do Mexilhão, onde viviam os mexilhões que aguentavam todas as tiranias.
Escrito no final dos anos sessenta, início dos anos setenta, em Londres, onde o escritor se encontrava a lecionar Literatura Portuguesa e Brasileira, no King’s College, longe da família, dos amigos e do país. Instigado pelas cartas e desenhos que recebia da filha mais nova, Rita, e inspirado por uma fotografia que lhe foi tirada para o jornal francês L’Express, nos jardins do Crystal Palace, em 1969, em que é retratado junto de um enorme dinossauro de pedra que ornamentava o espaço, bem como por uma exposição sobre banda desenhada que vira no Institute of Contemporary Arts.
O livro constituiu um desafio para Cardoso Pires, uma vez que era algo completamente diferente de tudo o que até aí tinha escrito e, em simultâneo, uma catarse através do riso de tantos e tão prolongados interditos, uma brincadeira, um «divertissement» que reafirmava a tradição satírica da literatura portuguesa, desde a poesia medieval, com as suas cantigas de escárnio e maldizer, até às peças de Gil Vicente e à poesia de Bocage.
Dinossauro Excelentíssimo, com ilustrações e capa do arquiteto, pintor, ilustrador e cartoonista, João Abel Manta, seu amigo de longa data, foi publicado em junho de 1972 simultaneamente em Portugal e no Brasil. No nosso país foi editado pela Arcádia, que era, à época, dirigida por Rogério de Freitas, padrinho de casamento do escritor, uma editora falida, com os dias contados, que não tendo nada a perder, ousou aceitar o arriscado empreendimento. Isto porque, ainda que disfarçado sob a capa de uma história para crianças, o livro fazia uma caricatura feroz, uma crítica violenta, um ataque demolidor a Salazar e ao seu regime, constituindo um gesto de irreverência muito corajoso, claramente político.
Todavia, por incrível que pareça, vá lá saber-se porquê, escapou à apreensão pela censura... Pois, apesar de o ditador já ter morrido, a sua política continuava em pleno funcionamento. Marcelo Caetano, que sucedeu Salazar na presidência do Conselho, embora tendo prometido uma «primavera», governava «na continuidade» do regime que apoiara e do qual tinha sido um dos ideólogos, continuando a manter bem oleada a castradora máquina de repressão e censura.
Cardoso Pires viu o livro (o último que publicaria durante a ditadura) editado e posto à venda nas livrarias, sem ser apreendido pela censura, graças a um inusitado episódio ocorrido seis meses após o seu lançamento: em novembro de 1972, num debate na Assembleia Nacional acerca da liberdade de imprensa, o deputado ultrafascista da União Nacional, Casal Ribeiro, em discussão com Miller Guerra, o deputado da Ala Liberal, quis demonstrar a existência de liberdade de expressão no país, dando como exemplo a publicação do «ignóbil» "Dinossauro Excelentíssimo", que estava à venda em toda a parte. Depois disso, e tendo em conta a grande repercussão que o episódio teve na imprensa, já não seria possível à censura retirar o livro das livrarias e, menos ainda, a PIDE poderia perseguir o seu autor. Estavam de «mãos atadas».
Entretanto, o polémico livro, que irritou grande número de situacionistas e, a avaliar pelo seu «acolhimento indescritível», alegrou e encorajou um número maior ainda de oposicionistas, foi o acontecimento literário de 1972, a estrela da Feira do Livro desse ano, e um sucesso de vendas, contabilizando seis edições até 25 de abril de 1974.
O réptil antiquíssimo deve ter dado três voltas no caixão.

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