Da difícil arte de perdoar

 



Perdoar não é fácil. 

Porque perdoar é dizer que a dor que carregamos foi licita, digna ou merecida. E refiro-me a dor real como o de uma traição, de um roubo, de violência, humilhação, abdução. Enquanto carregamos essa dor "ilegítima" connosco para todo o lado, somos incapazes de ver o processo por outro prisma. Quando perdoamos, efetivamente, é quando estamos prontos para olhar o outro sob o ponto de vista, não de inocente, mas antes da realidade dele e compreendemos a nossa. O outro fez o que sabia. E essa é a escola do outro, as opções do outro, a escolha do outro. Quando perdoamos, abandonamos o "papel" de vítima ou inocente. 

No processo de perdoar que é o mesmo que não permitir que o que vivemos continue a estar presente e aceitar que faz parte do que passou, aceitamos a vulnerabilidade do outro. 

No meu caso, significa somente que eu fiz o meu melhor e ele fez o melhor dele. Não há qualquer confusão. Eu aceitei ser humilhada, evitando o conflito, eu aceitei ser traída, por saber que o outro não tinha condições de se respeitar, logo já não poderia esperar do outro respeito, aceitei todas as contingências, mas não fui vítima dele e sim de mim, porque eu poderia ter feito outra escolha. E nós somos o que escolhemos. O amor, a amizade e todos os sentimentos saudáveis que carregamos, transportamos connosco nos faz acreditar que o outro nos é igual. O feedback só existe na nossa mente, nas expectativas que temos do outro e não na realidade do outro. Esses pressupostos são irrealistas e, apesar de contaminadas pelo nosso querer e ação, não são a realidade do outro. São a nossa. Não podemos despejar bondade em cima de alguém cujo propósito connosco é o de abduzir. E quem abduz é narcisista.

Este "vocábulo" está na moda, é usado, muitas vezes, sem uma compreensão interna do que é. Afinal, que é então o narcisismo? É um conceito da psicanálise que define o indivíduo que admira exageradamente a sua própria imagem e nutre uma paixão excessiva por si mesmoO termo é derivado de Narciso, que segundo a mitologia grega, era um belo jovem que despertou o amor da ninfa Eco. Mas Narciso rejeitou esse amor e por isso foi condenado a apaixonar-se pela sua própria imagem refletida na água. Narciso acabou cometendo suicídio por afogamento. Posteriormente, a mãe Terra o converteu-o numa flor (narciso). Isso é na mitologia.

Na realidade, o narcisista é um ser com um amor próprio exacerbado, prepotente e arrogante que se pensa o melhor, o mais forte, o mais bonito, o mais inteligente, abduzindo o outro, nas relações com o mundo e com os seus iguais. Na verdade, o narcisista é invejoso, egoísta e despropositado. Porque viveu situações graves na infância, variadas situações de falta de amor ou excessivas de proteção dos progenitores, do grupo de pares, das pessoas mais influentes do seu meio ambiente. E que internalizou que, não tendo as condições ideais e pretendidas, as iria beber de outras formas, em outros ambientes. Assim, o narcisista sofre de falta de amor dos outros e tenta amar-se a si mesmo, de uma forma doentia, podendo chegar a situações de neurose, buscando ser o centro das atenções quando e sempre que puder. Muitas e variadas situações concorrem para o narcisismo.

Então, os narcisistas, para se "defenderem" do mundo, dos outros, empunham, tal como espadas as suas dores, dando-lhes a forma de virtudes excessivas. Na verdade, são inseguros, solitários, egocêntricos e imaturos e, tantas vezes solitários. 

Na minha relação pessoal com um narcisista, não fui vítima, na medida em que sabia das suas inseguranças, vomitadas mais tarde em forma de tentativa de abdução da minha própria personalidade e se muitas vezes, fui eu inteira, não permitindo a sua abdução, tantas outras, para ter paz, permiti que o outro acreditasse que sim, ele é que tinha razão, que sim, a vontade dele prevalecia, que sim, ele estava com razão. E nessa altura, essas escolhas determinaram todo o resto. Não sou vítima nem ele um condenado. 

A paz é, para mim, o caminho do meio. Tinha vindo a ser poupada, nestes dois anos em que aguardo a justiça, no caso que vivi pessoalmente, a ter que o ver.

Ontem vi-o. Estava na minha frente, numa fila de tabacaria. Reconheci-o imediatamente, não obstante estar mais gordo, mais barbudo, mais careca. Era ele mesmo, trajado de preto, porque essa cor esconde e/ou disfarça a gordura provocada pela bulimia ou desarranjo alimentar, provocado pelas vivências duras do ser humano em questão, mas diria que o mesmo. Não se melhorou. Comprava raspadinhas, quem sabe, para ver se tinha um golpe de sorte e lhe saía uma pipa de massa para me pagar o que me deve. Não sei. Sei que o vi, com a língua de fora trincada, como uma criança que aguarda um milagre. E não senti raiva. Nem tristeza, nem nada que me fizesse sentir mal nem bem. Vi-o como um ser humano, igual aos outros, aos tantos outros que vejo, em tantas outras filas onde tenho de esperar vez. E dei comigo a pensar que, sem saber, a hostilidade de atitudes que ele teve para comigo se desvaneceram e me tornaram diferente, na forma de apreender o outro. Continuo a mesma pessoa, as minhas escolhas, essas é que mudaram. Quem mudou internamente fui eu. Entendo que fiz o meu melhor por aquele ser humano com quem privei. A questão do merecimento é uma falsa questão, na medida em que não diz respeito a mim própria, mas ao outro. Serei sempre esta. A que faz a sua parte e que, na medida das suas possibilidades sempre ajudará quem de mim precise. Com a diferença de pensar e repensar na atitude correta. Não melhoramos nem mudamos ninguém, a não ser a nós mesmos. Não podemos salvar o mundo. Podemos escolher melhor o mundo, o nosso, em que queremos viver. 

Acredito que esse "encontro" teve o dedo do meu pai. Um teste. 

-Filha, vais ver que não dói nada. O teu coração é, afinal, bem mais forte do que crês. 

E eu dou-lhe razão. Os sentimentos bons que trazemos dentro e que fazem quem somos, permitem-nos perdoar a nós e aos outros pelos erros que cometemos. Os maus sentimentos tornam-nos imaturos e despreparados para lidar com o social. 

Perdoar é uma escolha. A escolha pela paz, o caminho do meio, como lhe chamo. 

E eu sei que já o perdoei, porque me perdoei a mim de ter aceitado o errado, de eu própria ter feito escolhas erradas. E só quando nos perdoamos a nós mesmos, estamos aptos a perdoar o outro.

E se perdoar é uma arte, então, meus caros, eu sou uma artista e das boas. 

A razão nunca me serviu para nada, nas diferenças com o outro. A paz interna, sim, foi sempre o caminho eleito. E eu escolho a paz. A serenidade de me saber humana e me saber inteira. Não me diminui entender o outro, ao contrário, permite que me expanda. E foi mesmo com esse propósito que escolhi a licenciatura de Psicologia. Entender os outros. E essa é quem eu sou, afinal. 


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