A música empresta alegria ao sótão da memória

 


Algumas memórias ficam retidas em nós. Nem sempre por bons motivos. Essas tornam-se edificantes, deste edifício chamado nós. Outras são gloriosas, porque se cristalizam e, porque não se repetem e nos fizeram felizes, de tanto bailarem por dentro, nos fazem sentir que foram um sonho, nada mais que isso. E voltamos a elas. Um número irremediável de vezes. Esta Trip dos Stll Corners associado ao vídeo realizado pelo Wemerson Ferreira, leva-me a várias épocas de vida, desde gaiata a já adulta, sempre nos mesmos lugares, tentando sentir e talvez manter, alimentando a impossibilidade de sentir os cheiros e as sensações do calor cálido no corpo, na mesma praia, nos mesmos retornos a esse passado que é irrepetível por todas as circunstâncias. 
Recordo-me do meu pai feliz e cantarolando, fugindo sempre para a praia do Marreco, no seu Simca 1100, GH-25-50, bege e, na parte superior da carroceria preto, com os seus cartuchos musicais, o paizinho único, com a sua vontade de viver e de sorrir à vida, que contagiava todas as almas, com os seus dois filhos, atrás, sempre cantando, sempre inventando pagode até chegarmos àquela brisa de mar, àquele cheiro de sargaços e a visão das ondas a chocarem contra o farolim da rocha a meio da praia, onde ele nunca se atreveu a nadar, devido às suas limitações cardíacas, mas era o dínamo de muitos que se alegravam na sua alegria, e encorajava até um morto a ter sede de vida. É assim que continuo a ver o meu paizinho, sempre bem-disposto, sempre cheio de ideias para tornar o dia memorável. O Francisco, é como se chama o meu pai, tinha uma máquina de filmar e carregava para todo o lado, onde levasse os filhos e, depois de inventar mil atividades das quais se cansava muito rápido e se encostava a sorrir e a filmar, era o protagonista principal dos meus filmes, mas não dos dele. Assim, recordo-me de muitos serões, onde um lençol branco era colocado numa parede, outras vezes um pano de veludo preto, apagavam-se as luzes e aquelas imagens que passavam, com pixeis pretos a intrometerem-se, nas caras das pessoas entre uma imagem e outra conduziam-nos ao que veio a ser o registo fotográfico de um tempo repetível, apenas nos lampejos de memória. A onda que me arrasta entre tempos diferentes, da época onde a felicidade sobrava-nos e hoje, bem vistas as coisas, foi uma audácia dele e nossa, tão dura de manter. A vida do mundo ceifou a vida dele, mas não enterrou estas memórias. A mãe não entra muito nestas memórias. A não ser na visualização dos filmes ou entre um piquenique e uma saída a Coimbra, por exemplo. Era escrava de horários no hospital, fazendo turnos malucos. O pai agarrava-a pelo pescoço e despejava-lhe um beijo ou dois pelos cabelos e pescoço e gargalhava: anda cá Evinha, anda cá que os teus filhos querem ver-te sorrir! A mãe, entre sorrisos e grunhidos tentava escapar do amor dele, do abraço, fugir do centro das atenções e de receber mimo, hoje sei-o, na altura, achava-a um ser estranho e perigoso para o elemento familiar, porque ou cortava a alegria ou tentava esquivar-se da felicidade ofertada. Não estava habituada a mimo, a ser feliz. Nunca se habituou. Talvez pressentisse que não ia ter direito a mais do que meia dúzia de anos na companhia dele. 
Hoje posso perceber da sua falta de alegria ao ouvir o Grândola Vila Morena ou Green Windows, enquanto nós, chavalos, o Francisco incluído, tentávamos, sem nem saber o que o tempo ia fazer connosco, aproveitar carpe diem, até ao fim que não sabíamos e nem queríamos saber, o dia, os sorrisos e a música. O pai adorava mexilhões e todos os víveres e cerveja gelada. O pai tinha vinte e tal anos. Corria comigo para o Estádio do Dragão, nunca esquecendo da minha bisnaga azul e branca que enchia meticulosamente com água, outras vezes com água dos tremoços, enchida no café Conde, ao lado da loja dele, ao lado do hospital onde trabalhava a mãe, e no café das maratonas de bilhar do pai, lá enchia as bisnagas, ao que todos gargalhavam e instruía-me: Filha, só molhas os adversários, todos os que tiverem cachecóis, chapéus azuis, nada! Só os outros! Eu já sabia de cor o que tinha de fazer, com três, quatro, cinco anos, encavalitada nas costas do pai assistia aos golos do alto, o pai era muito alto e empoleirada nas costas dele, eu era bastante maior que todos os outros e a minha tarefa de molhar os "inimigos" do Futebol Clube do Porto via-se facilitada. No final, íamos à praça Velasquez, onde se aglutinava a gente, as mulheres das pipocas e do algodão doce, para mim era sempre algodão doce e o pai, parava aqui e ali, havia sempre muita gente que nos parava: Ó Guedes, grande golo aquele! E riam e eu olhava o pai sempre da mesma maneira: Grande, sequioso de vida, o mais feliz de todos, o mais bonito. O meu querido herói! O único que ainda desfila incólume nas minhas memórias todas, a salvo de perceções menos boas que fui tendo de todos os outros que ficaram, mas efetivamente nunca fizeram parte do meu espólio de memórias felizes. 
O avô Rodrigo confiava muito no pai e hoje, sei bem que a família dele, do pai, verem o pai conseguir chegar aos trinta anos de idade, desmentido por tantos médicos, também lhes tinha acrescido a vontade de viver, motivados pela força dele, pela alegria que contagiava. O meu pai era um menino alegre. As memórias são onde vivem os nossos queridos fantasmas e é por isso que eu, no meu descontentamento com os vivos, fiquei cativa e aprendi a comunicar com eles. 
Nas minhas memórias de domingos, de Natal, de futebol, de verões eternos, estão preservados, intactos e mais vivos do que os que vejo passar, diante de mim, de semblantes cerrados, todos, até que também eu faça parte de um pedaço de lembrança de outros, e possa partir para ficar para sempre junto deles. Desfilam já muitos nessas memórias de quem tenho saudades eternas de vida. Alguns domingos são a ferida em carne viva, que as horas retiram a crosta, uma dor exposta sem condições de ganhar saúde outra vez. E até os lençóis pendurados na corda de secar, como ontem, me renovam a saudade de poder ver outra vez as imagens dos filmes passados, onde a voz não ficava gravada, exceto cá dentro, onde fazem eco, exceto nos cartuchos do pai e satirizada por nós, em altos berros enquanto o pai, de volante nas mãos assobiava e pedia: . Filha, ora canta lá outra vez os vinte anos! E lá voltávamos ao registo da música e da alegria que era um lugar dentro de nós onde nenhum mal podia chegar, interromper, danificar e, muito menos, apagar. É lá que eu moro!




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