Crónica dos Infelizes acomodados

 



Ser feliz é, mais do que um conceito, uma presunção. Existe, para cada um, o patamar de que todos falam e que não converge - ainda bem- para os mesmos pontos! Só este facto já declina, e em muito, a escala de alegria e felicidade a que muitos aspiram e poucos conseguem atingir. Ser feliz pode, eventualmente, ser um estado, o de estar - enquanto causalidade (des)contínua- mas, sobretudo de ser. E aí chegados, a escala diminui drasticamente, em termos de numerário e qualidade. Que isto de ser não é algo que se possa adquirir com paypal, nem com código de barras de um programa informático subsidiado pelo progresso, a quanto obrigas. Ser feliz não é uma viagem com ida sem volta, porque o ser humano, não só nas suas múltiplas interações com as realidades próximas, se corrige e se transforma - é um dos dados a analisar. São imensas variáveis e variantes e ainda bem que o mundo é uma esfera em perpétuo movimento, mas não chega para avaliar os índices de felicidade. Falam no Butão, nesse país pequeno asiático, onde a massa humana tem sido avaliada e estudada, mediante alguns fatores que denunciam positivamente índices alegres de ser feliz. 

Enquanto o ser humano não se cruza com circunstâncias que desafiam a segurança que acredita possuir, com as vicissitudes da ausência ou da predominância de outras variáveis, nem sequer se conhece. Na realidade, a maioria de nós que conhece múltiplos fatores que alteram essa avaliação é diferente de todos os outros. Todos nos encontramos em níveis diferentes, todos temos plataformas de acesso à vida similares ou não, mas viver para ser feliz devia ser, sem dúvida, o objetivo mais pertinente.  

Ser feliz e fazer os outros felizes, na medida das nossas possibilidades. Parece simples, a olho nu, e até é, mas nós somos tudo menos simples, e a nossa complexidade inventa percursos labirínticos e rotundas mirabolantes para não haver forma de atingir, numa só vida, esse objetivo crucial. O sujeito infeliz é, assim, o mais comum, que se acomoda nas dificuldades criadas para ir sorrindo, de quando em vez, para ir fazendo o outro sorrir, de longe a longe. E a vida passa. O homem recusa olhar o espelho da alma. Talvez porque o homem seja refém dos seus hábitos e rotinas, da sua hipotética segurança, da sua provisoriedade. Temos um prazo limitado, numa edição mais do que limitada. Somos exclusivos. Isso é uma garantia. Uns nas peculiares manutenções da zona de conforto, outros, opostamente, nas constantes reviravoltas da adrenalina que dá sair dos eixos e viver em estado permanente de aventura. 

O corpo, analisando de uma forma rasa, esta condição humana, é o veículo que usamos para interagir com as plataformas, mas também com os outros, independentemente do reino a que pertençam (e não me refiro a monarquias). A vida não se compraz dos nossos atrasos e regressos, e por mais que na retificação de erros, possamos usar o tempo (que não existe), como um elástico que vamos esticando na medida dessas interações, no final das contas, o deve e o haver são registos que apontamos mentalmente e nos fica retido gnosticamente por um curto período de tempo, durante um espaço curto de acesso e, como vivemos neste dealbar de outra época que desconhecemos, mas pressentimos assustadora, e é, temos que eliminar dados para que novos possam encabeçar as nossas vidas. A amnésia é o erro fatídico da permanência e da concorrência a velhos e novos erros.  Tudo de consumo imediato - o mediatismo impôs-se vigorosamente - somos cataventos, antenas que contaminamos o veículo corporal de ansiedades, de leviandades que cometemos contra esse veículo, apressando o seu desfecho para um prazo anterior ao programado, se tivéssemos cuidado melhor dele. E de condição em condição, de coordenadas e latitudes em crenças e preconceitos, vamos construindo todo um universo de lixo. Reciclar o que nos faz bem e descartar o que nos faz mal é necessário e urgente. Sermos felizes não é o urgente em nós, mas sim o vazio permanente que nos habita, e este convida-nos a análises. A reflexões já tão urgentes e tardias e, ainda assim, empurramos com a barriga essa urgência de nós. Devemo-nos isso. O que nos faz feliz? O que nos deixa confortáveis acerca de nós? O que necessita ser mudado para responder a essa urgência de sabermos ao que viemos?

Muitos filósofos, psicólogos, sociólogos e tantos outros pensadores sem licenciaturas e nem doutoramentos (e muitos enólogos, certamente) chegaram e chegam na mesma conclusão sobre este século: O homem sequestrou-se na falsa segurança social, abdicando da sua interioridade, abduzindo o intelecto, preferindo condutores e líderes de massas que lhes permitam não pensar. O vazio existencial grita, mas o homem não quer ouvir-se. Porque isso significaria mudar, desconstruir templos e centros de consumo imediato que vão, temporariamente, amenizando essa felicidade temporária que termina, ainda o bem físico não se desgastou. A exigência social, os gadgets, a inteligência artificial, ganham poder nessa vulnerabilidade imensa do homem que se desconhece, que obedece a aspetos primários e primatas, de subsistência e novidade, alterando os polos, consoante a sua insatisfação e hiato. E é aqui que a armadilha do poder, estrategicamente, se monta contra ele próprio e os seus iguais. Como combater esta liquidez inumana? Estaremos nós habilitados para abandonar a velha carcaça da inutilidade e dos monstros que criamos que só aguardam um timing adequado para nos vencerem a todos? Estaremos preparados para abdicar do velho e resgatar valores que se inverteram, destituindo a nossa humanidade numa vulnerabilidade perigosa? Estaremos maduros o suficiente para substituir a competição pela competência a favor do todo? 

Se sim, para quando? Seremos só mais uma raça a preparar-se para a sua próxima extinção, via cataclismos e monstruosidades apadrinhadas pelo todo? 

Os infelizes acordam com um relógio em contratempo, esfregam as costas, os dentes, os pés e as expetativas num duche ou sem ele, empurram as máquinas, sempre a correr, para momentos de relaxe e vivem dependurados pelos bolsos, pelo pescoço, pelo vazio do consumismo, num atentado cardíaco diário, pagando contas, inventando outras tantas, os senhores do poder agradecem e continuam a escravizá-los, compram-lhes horas extraordinárias, viciam-nos nos momentos de folga e de pausa e comprometem-se a aumentar mais gadgets para os manterem assim. Cativos e cegos. Presos pelas suas debilidades. Numa liberdade aparente e tortuosa, entre orgasmos fictícios e esplendores de criptocracias, que hão-de vir a ser felizes, mais felizes, quiçá mais satisfeitos, quiçá mais humanos, quiçá o tempo responda, e, nem tarde muito a fazê-lo. Somos imaturos, teimosos e pouco inteligentes. Cinco minutos de fama e mais vale cair em graça do que ser engraçado! Ou na ocasião que faz o ladrão, ou nos amigos dos amigos que nos favorecem na escravidão da qual nos tornamos dependentes!

Que possuímos nós, para além do pensamento e do coração, quando deitamos na almofada e afundamos na insónia ou na dependência de ansiolíticos, para podermos esquecer que isto não é a vida que sonhamos para os nossos descendentes? Que temos nós a oferecer aos miúdos que nascem agora, senão um mundo inventado onde adoecerão sem cura? Onde nos perdemos? E no fim de semana, no fim de semana aumentado, nas férias ou na baixa por incapacidade ou doença, vamos espreitar os supostos "felizes" num campo de golfe, numa praia, numa esplanada, num boteco de esquina e nos damos conta que, afinal, enquanto houver um planeta em guerras e desavenças, em conflitos criados em nome da paz e de cristos, enquanto houver laboratórios farmacêuticos a adiar a nossa cura para o tratamento e manutenção das nossas doenças, que enquanto houver os famosos dez por cento da população com a liquidez produzida pelos noventa por cento de escravos adoecidos, faremos parte do problema e nunca da solução. Sim, na equação somos o máximo divisor comum de seres não pensantes que promete adiar o uso do cérebro para a próxima vida ou, em última análise, para uso exclusivo do patrão a que nos vendemos, que somos a espécie mais estúpida que garante continuidade via esperma e óvulos, mas não garante a igualdade de circunstâncias a todos, não a saúde e a promoção de bem-estar, não a inversão de valores e alteração de paradigmas, não a felicidade, mas o vazio que nos engravida de controle e manipulação e competição contra os outros iguais a nós! 

Os infelizes competem entre si, mas não consigo mesmos, para se tornarem melhores pessoas, os tristes invejam o seu igual, mas não tentam exterminar o que os faz se sentirem em guerra! A farinha do mesmo saco nas mãos de predadores é o que somos! E juramos, por preguiça, leviandades e alarvidades que tais, honrar a manutenção deste mesmo estado de coisas! E isso é que é mesmo triste e infeliz. 

Observem aos domingos, com ternura e candura, com inocência e virgindade, os escravos que se deslumbram com duas horas de esplanada, em conversas de mesmice, trocando as misérias como se fossem galhardetes e até são! De estupidez atroz! E correm para casa, para o restaurante, para o café do amigo, para grandes superfícies, para outdoors insípidos, beber mais uma súrbia, comer mais uma pizza, desgastar a amargura com os maxilares e contar os segundos, para, no dia seguinte, segunda-feira no mundo, voltar à escravidão costumeira, falar mal do Paulo, do Pedro, da Teresa e da Inês que se foram viver para uma comunidade longínqua, entre montanhas, viver numa casinha de rodas itinerante e aproveitar a meia dúzia de anos que cá andam! E não, não é para serem diferentes, como se ser diferente fosse uma coisa a que se ter preconceito! É para sentirem que vivem, que mais do que existir e ser escravo do tempo e dos hipoteticamente felizes e com certeza ricos, a vida pode ser um pôr do Sol e um pedaço de terra, onde trabalhamos para nós, onde o vizinho não quer competir connosco, mas partilhar, e onde os sonhos são maiores do que qualquer plasma ou ferrari. E sabem melhor do que o mais do mesmo que o todo ambiciona.

E veem estrangeiros imigrantes e vão portugueses emigrantes, mundo afora, na procura de um mundo melhor, mas "ah que deus bom" os enviaria para nos roubar a servidão que é nossa e nos está garantida?

Nós somos e sempre seremos itinerantes por cá! Nascer nesta ou naquela terra é um "acidente" de percurso, mas enquanto portugueses, qual a moral de entrar no bota-abaixo costumeiro dos imigrantes que procuram melhores condições de vida para os seus, se nós, em 1500, nos aventuramos a rasgar os mares em cascos que se afundaram e outros tantos que chegaram a bons portos, de onde veem agora eles, com que moral nos atrevemos a ser preconceituosos com outros iguais a nós, que Portugal está espalhado pelo mundo, não só como ex-colonizadores (e isso não é um grande galhardete, pelas sevícias causadas em territórios onde chegamos) como nação de gente que se adapta e tenta melhorar as suas condições de vida? Nunca conheci piores emigrantes que os portugueses, que tentam em terras alheias detonar os seus próprios conterrâneos, que perseguem e tentam aniquilar a reputação dos seus iguais, que competem e detonam a vida de portugueses iguais a si, de uma forma totalmente gratuita, de ausência de valores de solidariedade e empatia!?

As manadas de infelizes são preocupantes! Que havemos de fazer com eles? Exportá-los para Marte, parece-vos bem? 

Sonho em ver mais Pedros e Paulos, mais Teresas e Inês partirem sem destino territorial, mas com um destino interno concreto e fidedigno: alterar a vida social, combater a precariedade afetiva e, certamente, recusar rebanhos de apatia e comodismo! 

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