Nota do meu mau feitio e descrença na humanidade
Pai, hoje chovo com o tempo com que nos abençoas e sinto-me mais acompanhada. O meu descrédito face aos meus irmãos é total. Talvez seja só hoje, talvez seja porque todos os dias me injeto de esperança, garantindo a mim mesma que iremos alterar a triste factualidade que nos encobre as virtudes que nos deste, para rompermos todos estes círculos viciosos. É com imenso desagrado que te digo que hoje sinto esta dualidade entre a misericórdia e a repulsa, a tristeza e a vergonha pelo estado civilizacional a que chegamos e do qual, hoje, pai, só hoje, não creio pretendemos sair. Que esse livre-arbítrio está a vencer-nos pelo avesso. As escolhas da aparência, frivolidade, desprezo pelas minorias, menosprezo pelos iguais. Um egoísmo atroz que deixam que se cole nas suas vulnerabilidades e arrastam as suas misérias próprias como se fossem meritórias de virtuosismo e altivez. Não se enxergam e, essa fuga do espelho é digna de misericórdia, paizinho. Dói-me tudo hoje. Sobretudo o fracasso da humanidade!
Receio que tenhamos chegado a um ponto sem retorno, em matéria de esperança e de aprendizagem. O ser humano carrega consigo a luz divina, o pó de estrelas um adn poderoso, o de ter capacidades imensas. Somos portadores do adn de Cristo e de todos os iluminados que vieram trazer luz às trevas imemoriais. Potencial gigantesco de inteligência, dons, habilidades, quiçá, a maior seja a de se adaptar a territórios e circunstâncias hostis. Creio, no entanto, que a humanidade escolheu cultivar a sombra, as suas minudências e preferiu não seguir a jornada de autodescoberta e expansão das potencialidades e consciência. Na sua grande maioria. Em tantos lugares deste globo, noutras latitudes menos favorecidas, observam-se crianças de rosto feliz, brincando com paus e pedras, homens com falta de água e de alimentos, com estruturas frágeis e, no entanto, numa entrega total ao outro, numa inocência total, ofertando-se prontamente ao outro. Hoje acordei muito triste. Tenho lutado contra estas introspeções que não abonam a favor da minha raça. Se, por um lado, o homem ocidental, por ocorrências diversas, foi favorecido pelo "progresso", para se auto-motivar para a melhoria de si mesmo, por outro lado, são precisamente essas questões o alvo do seu retrocesso, porque se acomodam ao parir da mesmice, tantas vezes entrando em processos de competição contra o seu semelhante, ao invés de o fazer consigo mesmo. É triste sermos o mais do mesmo, envergonhando os nossos ancestrais que tanto produziram para o bem comum. Na sua grande maioria, o tecido humano vasculha a lama que produz, embrenha-se nas sombras da sua vaidade e ambição desmedida e perde a alegria da auto-descoberta e do serviço ao todo.
Em breve, comemoram (e com que solene hipocrisia) a data em que crucificaram a tua descendência e, no entanto, fazem-no todos os dias, todos os dias cospem no teu virtuosismo, nas tuas vontades e usam a data para o mesmo consumismo exacerbado, as madrinhas e os presentes, os ramos e as amêndoas, o domingo dos tristes vaidosos num desfile de dar dó a quem os observa. Pretendendo ter ao invés de ser mais. Supondo que tu só existes enquanto parangona de aparente conciliação e inexistência, supondo que ninguém lhes sabe ler os comportamentos, a alma, o coração! Creem ocultar os seus defeitos com as suas vestes! Quanta ignorância semeiam nas suas andanças! Escondendo a sua ausência de valores num envelope dirigido ao padre e aos seus sacristãos, disposto numa mesa que ostenta o excesso e mendiga, no oculto, o perdão e o continuar da mesma procedência. Talvez acreditem não serem mais dignos e não o queiram enfrentar a si mesmos! Quando se observa esta massa amorfa, torna-se impossível não sentir misericórdia e estupefação. Onde nos perdemos nós do essencial?
A justiça, a verdade e a empatia transportam dentro de si valores imateriais que são ferramentas essenciais para modelos civilizacionais de sucesso para o bem comum, no entanto, vejo estes vocábulos serem usados como se fossem acessórios de ascensão social ou meros vocábulos de desinteresse e apatia. Temo pelo todo, temo pela minha descendência e até pela vergonha que sinto face aos meus ascendentes que tanto valor acrescentaram ao tecido comum das sociedades onde viveram. Que vergonha e tristeza sinto, hoje, Pai!
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