A prosa lírica dos meus dias

 


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"Há momentos em que preciso de pôr em ordem as minhas impressões, sobretudo quando se parte. Viajar cria a sensação de que se está a recomeçar, mesmo que nada tenha mudado. Mas é como se nada pudesse falhar: cada palavra, cada verbo, cada substantivo, têm de estar no seu lugar preciso na frase, mesmo que o resto salte para fora das normas, a começar pela respiração.

Com efeito, desembarcar depois de umas horas dentro do clima seco e artificial de uma carruagem, é como mergulhar num aquário, recebendo de chofre o ar húmido do atlântico, o vento agressivo do Inverno, um céu onde as nuvens correm como animais selvagens. Recuperar a vida exterior faz-me ceder ao sentimentalismo, à cultura das emoções, e liberta-me dessa depressão obscura que acompanha as horas de viagem, sentado num espaço exíguo, que me obriga a recuperar imagens e sentimentos que desejava que não continuassem a fazer parte da minha vida. 

Tudo isto aconteceu por uma razão simples, devido a um convite que recebi para fazer uma conferência sobre o profetismo e a sua função no campo da história. Ia dizer que o futuro não faz parte do tempo em que o homem age; e o que acontece no mundo das palavras não tem aplicação fora delas. Redigi a minha comunicação durante a viagem de comboio, enquanto a paisagem desfilava por detrás de uma chuva contínua e deprimente. Tinham-me pedido que integrasse o meu tema no período de decadentismo, sobre o qual escrevera vários artigos, na qualidade de crítico de arte. Não gosto de me repetir; e sem dúvida devido à chuva que me obrigava a concentrar-me nos meus pensamentos, e não no arrumado e sólido campo que se estendia ao longo da via-férrea, e ia já saindo da letargia invernal, consegui aliar o tom subjetivo ao rigor académico que os ouvintes exigem em encontros como aquele. Eram cinco horas quando acabei de falar, voltando a meter-me no comboio para regressar ainda nessa noite, com o sentimento de expectativa frustrada que nos assalta sempre que ninguém está à nossa espera num fim de viagem. 

  Mas nem sempre o que sucede é o que está previsto: um adulto tem obrigação óbvia de se saber orientar nos meandros do acaso, por muito pouco que ele faça parte das contingências a que obedece a rotina de um presente que nós próprios definimos. Mentalmente, apercebi-me de uma ressonância desta constatação cronológica ao associar as cinco horas do relógio da estação às cinco horas que, desde há uns decénios, estão proibidas de soar no romance que se pretenda moderno. Eu ouvia as cinco horas caírem na minha cabeça com o peso de uma condenação a algo que estivesse para vir, e que se pudesse parecer com um mau romance de fim de século, cheio de sentimentos esgarçados e lugares comuns afectivos. 

Entrei no quarto e, antes ainda de abrir as malas e arrumar as coisas, peguei no caderno de apontamentos e recomecei a história. Desta vez, não seria preciso nenhum mau jantar nem uma noite de frio para que eu pusesse em ordem as ideias que tinha sobre o mundo. Limitei-me a reconstituir situações; sabendo que eu próprio estava já, irremediavelmente, lá dentro; e que cada um daqueles seres tinha saído de mim como uma fotocópia. De certo modo, o caderno em que eu escrevia, de capa preta, começava a tomar a forma de um poço; e quando o abria, era como se estivesse a espreitar para o fundo dele, o abismo de onde vinham as orações rezadas por um prisioneiro invisível, ali sepultado desde há uma eternidade. A única forma de o tirar do poço, pensei, seria encher o caderno com os meus apontamentos: impressões que vinham da viagem que fizera, e da conferência em que falara do caso de Salomé, sem a nomear. "



In O enigma de Salomé, Nuno Júdice, Editorial Teorema, 2007

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