Os agiotas são como as prostitutas


Os miseráveis, musical



Nascera de um ventre seco, cru, dir-se ia, cujo tempo era ocupado nas labutas intensas de garantir o dia seguinte. De uma mãe que, sem recursos materiais, carregava o filho e a sua própria existência com o corpo, se desfazendo nas mais variadas tarefas, para que não faltasse os tostões para pagar ao senhorio a renda de um quarto com sanitário, no centro da cidade. Nascera sem pai, literalmente, que esse vagabundeava pelos portos, sem rosto, qualquer um podia ser o seu pai, nem a própria mãe o sabia. O corpo dela havia sido usado infindáveis vezes para pagar isto e aquilo, nas esquinas dos prédios urbanos, nas gares de camionagem, nos elevadores da ascensão e nenhum a levou à glória.

Joaquim cedo percebeu que teria que se desenrascar sozinho. A mãe era um nome que se habituara a proferir no vazio de um quarto mal-amanhado, com roupas sujas pelo chão, garrafas vazias encostadas a uma pia improvisada e a mamadeiras com cheiro de leite podre. Sonhava com o dia em que eliminaria todas aquelas imagens feias e sujas da sua mente. Crescera a desejá-lo, enquanto carregava malotes de homens e senhoras para dentro do hotel no centro da cidade. A gorjeta nem sempre era garantida, mas quando caía na sua mão pequena, cuidava que o céu estremecia. Metia-as dentro de um lenço de pano que lhe dera Alberto, engraxador defronte do hotel e tornava a contar a sua renda, voltando a guardar na algibeira empedernida dos dias. À mãe, poucos foram os dias em que a vira, e sempre em horários desencontrados. Família não conhecia. Ouvira amigos da mãe, quando mais novo, a dizerem-lhe que tinha vindo de Alcobaça, onde deixara lá irmãos mais velhos e na mesma condição, sem grandes sonhos e sem grandes empenhos, exceto o de trabalharem terras para as poderem habitar. Assim tinha sido sempre, desde os ancestrais. Com vinte e quatro anos, já um homem feito, regressara da tropa e sonhava com voos mais altos. A sua maquia em dinheiro já lhe permitia ocultar a descendência incógnita de um pai marinheiro e anónimo, de uma mãe prostituta e sem dons de mãe e ele próprio se garantia, numa habitação nos limites da cidade que o vira crescer, a ser mula de trabalho, por uma moedita ou duas. Até surgir a sua oportunidade de crescer e matar todas as imagens que trazia no caco desde que nascera. O Garcez que tinha sido um dos seus amigos de rua, de família longínqua, mas com uma verdadeira mãe, que trabalhara para pô-lo na escola e aprender a vida dos livros e das gentes que nasciam com uma estrela que lhes garantia sonhar com futuros de mesa farta e de poucas preocupações, tinha-lhe vindo com uma proposta. E Joaquim Severino dera voltas ao miolo. Ele que não percebia nada de livros, nem de cultura e menos ainda de rendas e avultadas somas de dinheiro, sabia de berbicachos e de fazer contas. Quando a conversa acontecera, não dera muita atenção à proposta, mas agora, naquela manhã de inverno, pusera-se a magicar, rasurando um papel, e soube, naquele momento que ali estava o fragmento em que o seu pé-de-meia lhe ia garantir poder esquecer as desgraças de infância, a miserabilidade da mãe a esfregar os seus peitos de encontro aos mais diversos homens que cheiravam a tabaco e a perfumes caros, para conseguir uma nota que lhe permitisse comprar comida e lavar as roupas, arejar o quarto imundo e comprar umas ceroulas e uma jaqueta nova para o Joaquim poder continuar a trabalhar no hotel.

Alice era mãe de três raparigas em idade casadoira, as três bonitas e de trajes humildes. Diziam que descendia de famílias nobres que a tinham posto à margem da dita, expulsa de casa por ter emprenhado cedo e se recusar a revelar quem a havia emprenhado. Vivera de caridade num convento a quase trezentos quilómetros da moradia da família e num ato de coragem, fugira de lá com a filha no regaço, ajudada por dois aldeãos que sabiam das suas origens. Casara com um homem humilde e de muito trabalho, que aceitara a sua menina de dois anos e a emprenhara logo a seguir. Trabalhava na metalurgia e uma doença má lhe roubara a vida, antes de ver nascer a sua última filha. Alice costurara para fora e as suas meninas não trajavam alta-costura, mas sempre limpas e prendadas, sabiam fazer de tudo e ajudavam Alice no atelier em casa, onde ela mantinha várias freguesas contentes, com os seus arranjos. A filha mais velha, muito habilidosa, desenhava roupas belíssimas e mostrava as mesmas à freguesia da mãe. Alice queria aumentar os ingressos e já dava ouvidos à Teresinha, que conquistava cada vez mais freguesas com mais posses. O Garcez havia lhe dito que Alice precisava de um incremento para comprar máquinas melhores, mas que o banco, se assinasse o seu nome, daria conhecimento do seu paradeiro à família dela, sobejamente conhecida por todo o lado. Alice cortara com a sua família e nem sombra deles queria por perto. Não os havia perdoado pela sua fase mais difícil, de bebé no ventre e tratada como se fosse uma ladra, uma qualquer. 

-Aí é que entras tu, Severino. Arranjo-te um encontro com a dona Alice, e o resto é convosco. Pagas-me dois por cento do que te render o primeiro empréstimo e governas-te com o resto. Se der certo, arranjar-te ei mais clientes. Mas isto tem que ser sigilo. Não vais querer ser preso, ou pior, assaltado por um bando de delinquentes.

Encontrei o Garcez no velho Alberto, engraxando os botins, enquanto uma chuva caprichosa ameaçava voltar. E depois de cumprimentar o Alberto, disse ao ouvido do Garcez: - passa lá em casa, temos que tratar daquilo! 

Por mais voltas que desse à mioleira, depois de se ter inteirado dos benefícios que o banco cobrava, Severino não esquecia as imagens tristes e conspurcadas pela miséria até aos seus treze anos. 

Alice foi a primeira de muitas pessoas a quem Severino, através de Garcez, emprestou dinheiro a altos juros, sempre em secretismo, mas sempre deixando claro que, na ausência de pagamento, procuraria as pessoas e lhes arrestaria bens e se houvesse confronto, que zelassem pelo seu bem-estar físico e dos seus. Sempre com o auxílio de Garcez. 

A vida de Severino nunca mais voltou a ser a mesma. De um aluguer medíocre nos subúrbios da cidade, comprou uma quinta, depois um carro e a vida sorria-lhe sempre. Não queria casar. Nunca pensara nisso. Muito embora Garcez lhe contasse das regalias que era ter uma esposa em casa. Vinham-lhe à cabeça as imagens da própria mãe, esfregando-se neste e naquele, sempre a cheirar a tabaco, ranço e perfumes caros. A bela Inês, filha mais jovem de Alice estava em idade casadoira e, segundo Garcez, ela daria autorização para Garcez a desposar. 

Severino casou com a bela Inês, cobriu-a de rendas e sedas, de belos perfumes e de empregadas de servir. Disse a Alice que a dívida estava quitada, mas que a bela Inês deixaria de trabalhar com as suas irmãs e mãe no atelier de costura. Garcez continuou a fazer parte dos negócios de Severino, arranjando-lhe sempre gente necessitada de empréstimos, de forma que banco nenhum podia competir com os privilégios dados por Severino. 

- Joaquim, quero ir de férias para a praia em França. Todos os nossos conhecidos rumam a Saint Tropez e o próprio médico mo recomendou, a fim de alcançar mais saúde. Severino não a podia acompanhar e protelou, até não ter mais argumentos. Inês foi de férias acompanhada pelas irmãs e pela mãe. 

Em quinze dias a sua vida mudou. Quando Inês regressou, trazia um inchaço no ventre. Que Joaquim não compreendia. Inês estava grávida antes de partir, mas não dissera nada ao esposo, por saber que ele não queria descendência. Amargava-o pensar que qualquer criança que tivesse a fraca proveniência de vir de si, carregaria a miserabilidade da sua mãe e de si mesmo. E muito embora tivesse recursos para criar meia dúzia de crianças sem necessitar de recorrer a banco nenhum para lhe afiançar o bem-estar à família, na sua cabeça, a miséria era algo que contaminava pelo sangue e pelo ventre. Garcez lhe repetira as conveniências de ter a quem passar o seu legado, quando fosse mais velho, mas Severino não era capaz de lhe ver nada benigno. Os rompantes e conflitos começaram a levar Joaquim Severino para a bebida e para a noite, regressando tardiamente e violento, se Inês lhe dissesse fosse o que fosse. Fácil será depreender daqui que o espírito fraco e dominado de Joaquim Severino o levou a perder todos os bens fáceis conseguidos através da usura e levou a que Inês repetisse os padrões maternos (de Alice) e da própria mãe de Severino. Os ciclos repetem-se e se não houver aprendizagem, ética remanescente dos atos cometidos e um planejamento do exercício de funções da inteligência e emoções, todo o aprendido se perde no mesmo buraco, o da pobreza de espírito que desconhece a luz e a libertação dos cadeados das sombras humanas. 

Esta história tem probabilidades de vários desfechos, alguns deles até positivos. Na verdade, a história de Joaquim Severino é igual à história de vários agiotas e de várias prostitutas. Uma vez que se torna hábito, a facilidade de ingressos imediatos e a memória dos dias tristes torna-se mais forte do que qualquer argumento que operaria a mudança. Questões internas ganham piso a todo um mundo de alternativas e se consagram em doenças do foro psicológico e fisiológico. 

A miséria psicológica e espiritual é a mais débil e mais difícil de combater. O sujeito, ainda que não precise, continuará a recorrer à velha receita que o fez vencer uma anomalia material, porém a viscosidade das entranhas, quando não reparada, de uma forma consciente e voluntária formará, sempre, novas feridas por cima da velha ferida, para acordar o sujeito que as padece. Cabe ao sujeito cuidar e tratar. Como se trata a enfermidade da miséria humana, sem o precoce registo e aquiescência de que se é enfermo dela? 

Os agiotas são prostitutas, que encontram na solução visível e imediata o atalho para se manterem escravos da mesma receita. O corpo envelhece, amadurece, apodrece diante do fim, do espírito da privação, do atalho fácil e das prisões mentais que os leva ao derradeiro fim, sem incrementos, nem elevações e nem glória. O corpo pode manter cativo o espírito. A evolução depende única e exclusivamente da alma do cárcere.  


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