Crónica de neptuno na quarta
Esta noite passou devagar até quase às quatro da matina. Até voltar a acordar. Eu e as minhas insónias. Se as decompuser, espalham-se e crescem em forma de preocupações e ansiedades do futuro, satisfações e alegrias do agora, na verdade, o agora tem uma sombra que estaciona e talvez seja mesmo ela que me mantém na insónia. Chama-se estancamento. Quase quatro anos de imobilidade como pessoa, sem conviver com ninguém, exceto a minha mãe, com quem falo regularmente, diariamente, exceto com o Tomás entre diferenças de opinião e humor truncado e pessoal, exceto com os meus cães e gatos, as minhas plantas e volta e meia, lá recebo o Manel no telefone, o Chinita, o José Ferreira, o Justino, sempre no messenger, mas não são diálogos, são notas de registo, são bons dias e boas noites, são cumprimentos e força! Não falo com ninguém, não procuro ninguém. Estou isolada do mundo e esta não sou eu, é apenas uma parte de mim que fica na resiliência e nas consequências da outra parte, refém de ter confiado em todos. Hoje só confio em mim.
De noite, tento fazer uma playlist de músicas e de filmes para poder escolher como quero passar-me ao outro lado. A meditação tem sido adiada. Sempre que vou a ela, na primeira meia hora estou um corpo poisado nas águas para logo de seguida ser um rosto em lágrimas, um mar onde me afogo e todos os meus ancestrais aqui, neste meu quarto me limpam, me afagam e me dizem que está quase. A paciência é, a meu ver, a mais difícil das virtudes, requer que se aquietem as águas internas, o fogo interno, a terra interna, requer o poisio das emoções e o controle dos pensamentos. Toda a vida irrequieta, erro atrás de erro, merda atrás de merda, mas sempre dedicada a tudo e todos, deixando-me de lado, conscientemente. Esses foram os meus erros maiores, os de palmatória. O meu calcanhar de Aquiles. E como me sugaram, me manipularam, me incomodaram por isso. Hoje tento driblar essas memórias, apaziguando-me comigo, perdoando-me e amando-me. Às vezes, consigo. Às vezes, sou vencida e sempre vencida pelo cansaço.
Esta noite, não havia cães a ladrar, quando acordei. Tudo sossegado. Abri a janela do meu quarto e ouvi apenas as ervas, os rastejantes e um gato aqui ou um cão lá longe, dando conta das suas existências. Acendi o cigarro. Tirei duas ou três passas. Enoja-me o tabaco, mas é um vício que me acalma. Voltei a fechar a janela e no escuro, tateando pelo corredor, cheguei à cozinha. Liguei a luz do exaustor e fiz chá. Chá de gengibre e limonete. Ou limão. Tateando pelo corredor na claridade da lua que rasga pelos tijolos de vidro, cheguei ao quarto, outra vez. O bisavô, onde quer que esteja, pois já mudei a disposição dos móveis e dos quadros, não importa de que vertente, ele me olha, um olhar invasivo e ternurento e eu digo-lhe sem boca: eu sei, ás vezes em voz alta, eu sei bisavô, eu sei que preciso descansar, eu sei que preciso estar inteira, eu sei, eu sei, mas mesmo sabendo, a resistência ao sono é uma força motora enorme. Sentei-me na cama, bebericando o chá, olhando os meus mortos, presos nos quadros, na moldura do espelho da cómoda, e não pude deixar de me comover. Não me abandonam. Nem eu as saudades que tenho deles. O Viriato, a Cláudia, o meu pai, o Ruizinho, o bisavô e a bisavó, pais da minha vó Bina, e agora, também, os pais do bisavô Rodrigo e da minha madrinha. Já fiz as pazes com a minha madrinha. Que me chamou sorumbática na morte do avô, do seu irmão Rodrigo. Meu querido avô Rodrigo. Olho-os extasiada. Verdadeiramente extasiada. Que bonitos que são, como se mantêm limpos na passagem do tempo que nunca poupa ninguém. Limpos de um amor imaculado, de uma dedicação familiar levada aos detalhes, de uma intensidade de paixão na educação aos seus. Amo-os, cada dia mais, mais ainda do que quando vivos, que não havia a noção da sua perda e menos ainda da distância física de os perder. E afinal, ganhei-os nas minhas noites de tristeza, nos meus momentos de alegria. Não falo com vivos, só me relaciono com os idos que nunca se foram. A tia Carmen, depois de me ter surgido nos sonhos noturnos a pedir luz e jardim, depois de a ter libertado do pote de cinzas, nunca mais se me queixou, ao contrário, o seu sorriso enternece-me. E sim, tenho saudades físicas dela. Muitas. Tantas. Já me habituei a tê-los desta maneira. E quando acordo dos meus sonhos e pesadelos, aqui estão eles, para me fazerem sorrir, nos diálogos que mantenho amiúde, nos monólogos diriam os vivos, se me vissem. Esta noite, quando acordei antes das quatro, vi o formato de uma pizza, num papel, um círculo, onde apenas uma fatia estava em falta. Mas não era uma pizza. E a boca sem lábios me repetia: Neptuno. Neptuno, não esqueças do neptuno. E eu nunca me esqueço de Neptuno, ser-me ia impossível tal, que eu sou quarenta e um por cento de água. Mas aquela rodela num papel matizado da cor do sol envergonhado, onde faltava uma fatia, me repetiam que teria que levar em conta neptuno. O deus dos mares e a minha lua governando as marés cheias e as preias mar, governando os humores e as dissonâncias da alegria. E não obstante ter rido e chorado com os meus, aqui neste cubículo, onde o chá foi bebericado entre as minhas águas e as da chaleira, me perguntei, num acesso de lucidez, que eu sou assim comigo, talvez por ter tanto acumulo de planetas em virgem, o detalhista, por que raio chorava eu, se não sou infeliz, se me obrigo a ser feliz em tudo o que dou e faço? Porquê miúda? Porque eu não pertenço aqui. Estou à espera de vender este pedaço de terra, à espera do comprador perfeito, o certo, que já está destinado, para me pirar daqui para fora, para pegar em mim e na minha mãe e nos meus animais e dar de frosques. Que chá nenhum me faz ter amor a este pedaço de mundo, que não vim cá para morrer aqui, para me dedicar à inatividade dos dias. E são tantos os dias em que me obrigo a ser coerente comigo e com os outros.
Já tenho o frango a estufar, com cenoura, massa de pimentão, meio knorr de galinha, muito alho e um pouco de sal. Já tenho a salada de pepino, tomate e beterraba pronta, para obrigar a minha mãe a fortalecer a vida, combustível para produzir milagres, já está quase pronta mais uma refeição e já tenho adiantada a sopa de espinafres e cenoura, já tenho quase tudo pronto, falta pôr a mesa, as bebidas, e chamá-los para mais uma rotina de ficar em pé, de manter o mínimo a carburar. E a roupa que estendi está seca na corda, os bacorinhos da Kirie continuam a correr e abrigarem-se para dormir debaixo do meu carro, os homens da Penafiel verde que esventraram a rua há quase dois meses continuam a bulir. Tomara que esta semana se terminem as obras, para voltar a uma normalidade de não estragar outra vez o para-choques, de não dar cabo mais uma vez da minha paciência que tanto me custa olear. E agora, ergo a coluna vertebral, provo mais uma vez o molho do estufado que será servido com arroz seco e começo a preparar a máquina da loiça com a pastilha, nos maniqueísmos próprios da preguiça. Manter o máximo de organização para que a preguiça não me vença e eu mande tudo prás urtigas e desapareça com Neptuno. Não, não me esqueço de Neptuno, seja lá o que eles quiseram me dizer. Aos 23º de escorpião. Mesmo ali, ao lado do meu vertex, na mesma casa, mas já em sagitário. E algo que guardo junto do neptuno é que o nodo norte em áries voltou a retrogradar desde há dois dias e assim se mantem. A paciência a ser trabalhada, até que chegue aos 12º de áries. Até a uma libertação que pode ser explosiva, implosiva ou controlada. E isso não depende dos céus, do universo, de Deus, isso depende de mim, da minha fibra e dos ganhos terapêuticos que arrancarei a esta paciência habilmente trabalhada, minuciosamente esculpida e tão imersa em águas turvas, numa aparência de lago. Resiliência, Cristina. Resiliência, persistência e aceitação, Cristina, para a libertação, para a fé inundar-te. É assim que falo comigo e que me dou amor. Sim, amo-me muito. Sim, amo-me mais que a tudo. Sim, primeiro eu. Sim, priorizo-me, mas não é por isso que amo menos os outros. Ao contrário, só os amo porque me sei amar a mim. Este diário de crónicas é o meu feedback mais fiel. Sim, eu sou amor incondicional, mas primeiro adubo-me a mim.
E agora o almoço, para retomar os afazeres quotidianos de uma gaja doméstica, cheia de mau feitio e que fala com os mortos.
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