Templo de Deus
Depois de tantas vezes, de tantas formas, de tantas voltas dar à cabeça para explicar o óbvio, por fim, recorri a um desenho tosco. Pareceu-me ser o mais simples para uma pessoa tão mental quanto ela. Queria tanto ensinar-lhe a fé. Mas tive que lhe fazer o desenho do coração. Sou péssima a desenhar, mas é fácil desenhar um boneco idealizando um ser humano que se pode estender a todos os reinos, um círculo, com olhos, boca e nariz e orelhas, um pescoço e o seu tronco, os membros superiores, os membros inferiores, como se faz com os meninos na escola. E chapei o símbolo do coração no meio do peito daquele boneco infantilizado. Riu-se do meu boneco e provavelmente dos esforços que eu fazia, de modo a oferecer-lhe a minha perspetiva. Porque entre mil que tem disponíveis, amarfanha-as todas numa amálgama de coisa nenhuma, como se se desapropriasse da sua própria linha de raciocínio. Qualquer ideia dos outros era mais fidedigna do que a sua própria, porque não acreditava em nada. É desgastante, mas o amor incondicional nunca desiste dos outros, não pode desistir. E esta minha persistência, fiz-lhe ver, também é a fé a ser construída em mim, para que ela não tema o fim do planeta, a extinção humana, as atrocidades ou a morte. Para que serene a sua angústia, que me parece cada vez mais uma angústia domesticada pelo vício dos apagões. Talvez a minha mãe acredite que a espécie humana deva perecer, talvez se sinta menos angustiada, acreditando que o seu fim será atenuado pelo fim do todo. E isso exaspera-me, mas como o compreendo dessa forma, e por que a amo, não me rendo a essa desesperança dela de não ter o que os outros encontram nas religiões, mas ela não.
-Mãe, fé não se compra. Amor também não! Amor entrega-se, constrói-se, doa-se, mas não se vende. E tentei que seguisse o meu raciocínio, segundo o olhar dela, inverosímil, mas assentia com a cabeça, como se pudesse aceitar e compreender. Mostrando essa disposição. E ela não é católica, nem budista, nem de religião nenhuma, sabe que o bem se pratica e que o mal também, que é consequência da nossa ignorância e atos. Da falta de empatia ou da amorosidade que nasce das atitudes humanas. E eu não sou de desistir. Posso dar imensas voltas ao texto, morder a cauda e distrair-me para focar-me e voltar ao mesmo. Suspirei fundo. A sentir a minha energia ganhar potência via café, na mesa da minha cozinha. A caneta rabiscava no pequeno bloco de apontamentos e ela, ora olhava o papel, ora olhava os gatos na janela, evitando o meu olhar. -Eva, o livro da Bíblia, a palavra de Deus que ouve nos videos do youtube para tentar encontrar o fio da sua meada da fé começa aqui, neste boneco, neste coração. Não aqui, no seu peito. Era a isto que se referiam e não à capela, à igreja, à mesquita, ao templo, ao papa. Não existe Deus lá, se não houver Deus cá, dentro do nosso peito e deus é o amor incondicional que nutrimos aos outros, perdoando-nos, tentando, pelo menos, através de erros e acertos. Mãe, o cristo não está na cruz, como sabe, está em todos nós, mas dentro, não fora, não tem olhos azuis, mas olhos de todas as cores, de todas as línguas. Nós somos esses cristos que andamos no mundo. O cristo que morreu por nós na cruz é a traição e a mentira, a falta de empatia e a vingança com o próximo, o perjúrio e o falso testemunho, a manipulação e toda essa carrada de coisas que nos leva à nossa morte psicológica, que nos desvia do progresso de nos tornarmos melhores. Se quer ver pelo lado mental da coisa, é linear e simples. Somos seres completos, a vida é este jogo em que um dia acaba. Da nossa parte. E continua aqui para os outros que permanecem no espaço físico. E continua para além do corpo para os que partem para o além. É um privilégio fazermos parte deste jogo e usarmos de sabedoria para levarmos o melhor, para nos empenharmos na nossa melhor versão. Para não continuarmos a ser cristos violentados, mortos de fome e de miséria da falta de amor e de compreensão, das injustiças que se propagam, das guerras que se continuam. Amar não é competir, a não ser connosco, porque só essa competição é saudável. Porque aceita tão facilmente a ideia de que o apocalipse acontecerá, que o apagão se dará, que o Jabé que morreu era não sei quem da ordem mundial e que o diabo virá do vaticano?? O diabo está em nós todos, mãe, todos. Quando ao invés do amor escolhemos a mentira, o engodo, a traição, os subterfúgios. O diabo é a densidade da matéria a tentar sobrepor-se ao divino que carregamos dentro, nesse templo precioso que ninguém pode tocar de tão sagrado ele é, o verdadeiro templo é o nosso coração. Se nos desviamos da sua verdade, fugimos ao desempenho da nossa missão em levarmos progresso, e é deveras um privilégio comungar com a natureza e tantos gostariam de estar aqui agora e poder fazer a diferença. Se quiser tanto um Deus, como crê no diabo, leia onde está escrito que deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Com capacidade de se perpetuar nas criações e dons. Que o diabo é o autor dos crimes que se cometem, do silêncio das injustiças, da subtileza das manipulações. O amor é onde se encontra a verdade, a nossa verdadeira identidade, quem somos e não o que aparentamos ser, o amor, mãe, é aquela criatura lá fora, a nossa cadela deixar o prato dela para os seis filhos comerem, escusando-se ela a comer, enquanto os vê com fome e sabe não ter leite para os alimentar, mãe, é você deixar de comer, porque os seus filhos trazem uma visita inesperada e você não quer que lhes falte nada e abdica da sua parte para os outros, é compreender que se cada um fizer a sua parte de abnegação e de entrega, nem sequer haverá lugar a fome, ou a escravidão ou a humilhação. O nosso livre-arbítrio é esse, de escolhermos um caminho sabendo que existem dualidades que se rasgam dentro de nós, esperando a nossa vulnerabilidade nos vencer. A guerra no mundo reflete todas as nossas guerras internas, entre o que eu preciso e o que eu quero, entre o caminho e o atalho, entre eu me colocar acima dos outros ou manifestar uma relação de equidade, entre eu respeitar-me, no respeito que os outros me inspiram ou nem me respeitar de todo.
E eu não desisto, mas a minha energia esgota-se, porque são coisas aparentemente simples, mas tão complicadas para uma mente humana que radicaliza as coisas, precisando lhes dar chão. O chão dos outros. O bem será sempre o bem, independentemente que venha das pedras, do céu ou das experiências. O bem não se altera. Não se corrompe. O mal, sim, degenera-se. Encontra formas de se multiplicar muito mais rápido que o bem. O exercício de pensar deus, evolução, universo, amor ou energia é como se fosse uma provocação à equação professada por tantas religiões, um verdadeiro desafio vencer as vozes externas, e é de dentro pra fora que se atinge, que se chega lá, que se pode compreender. Uma luz na escuridão não tem a capacidade de iluminar o mundo, mas tem a capacidade de iluminar o suficiente para podermos ver que ainda vivemos nas trevas da civilização, nas trevas de uma mente que só progride para alguns, para algumas coisas, para uma meia dúzia de interesses. A medicina, a física quântica, a aeronáutica, e tantos outros ramos da ciência, tudo de bem que se faz em prole das sociedades tem solo para subsistir e continuar. Mas sempre numa perspetiva de dualidade. E de necessidade de equilíbrios constantes.
Os nossos ancestrais, que honro e amo, que vieram antes limpar as dificuldades para que os nossos caminhos se tornassem mais fáceis e mais cómodos, também eles merecem que a nossa existência continue progredindo, que sejam honrados até nos seus erros que nos trazem informações e ferramentas para não os repetirmos, a história é uma ferramenta, porque nela se leem os seus esforços, os seus sucessos, os seus intentos e a sua inteligência. E se não são capazes de sentir e saber disto tudo, então, se calhar, estamos perdidos como humanidade. Se não nos atrevermos a contruir pontes num compromisso com o futuro, porque continuam vocês a trazer filhos ao mundo? Para serem melhores que os demais? Para serem iguais a quem sois? Para que sejam os vossos prolongamentos? Para que cumpram os vossos sonhos e não os deles? Então, criem os vossos clones, deixem-nos multiplicarem-se, exercitem o vosso livre-arbítrio nessa senda e a terra voltará a ser inóspita e seremos pó de novo, tendo a oportunidade de avançar, escolhendo detonar o nosso fim enquanto espécie.
A minha mãe, ao fim de lhe tentar fazer imaginar o templo no coração, disse-me que não era assim tão fácil. Que a fé não era para todos, nem o amor, nem a capacidade de mudar, de fazer diferente. E eu levantei-me e depois da sobremesa perguntei-lhe se queria um café. Ela meneou a cabeça e disse-me que, se eu não me importasse, ia ouvir as barbaridades do presidente de todos os portugueses, e eu disse que sim, que fazia bem, e acompanhei a minha progenitora ao quarto dela, tendo escolhido sentar-se na poltrona, imersa nos vídeos do seu telemóvel, cercada de livros de sopas de letras e palavras, de crochet e de água e voltei à cozinha, para reunir a loiça, retirando os restos, passando por água e encavalitando tudo dentro da máquina. Lavei os balcões e o fogão, mas já derrotada pelo cansaço. Meti a pastilhinha na maria e peguei no restante do meu café, que já estava frio e retirei-me para os meus aposentos, sem sequer olhar se o chão precisava de aspirador. É pró lado que durmo melhor. Esgotada. Porque me importo.
Porque te importas, oh rapariga estúpida? que te importa? Como diz a senhora tua mãe, o fulano de tal diz que não há deus salvador, que salvador nenhum nos vem buscar, cada um salva-se a si mesmo. Que sim, que sim, é de um "salve-se quem puder" e por causa desse "salve-se quem puder" que chegamos aqui. Eis-nos aqui, na beirada do abismo. E ainda se atrevem a dizer que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço. Eu prefiro os comunistas que não são católicos nem patrocinam para que as criancinhas sejam enrabadas nas igrejas, à hipocrisia crescente que reina nos rebanhos dos quais não faço parte! É o nosso coração que defende e revela quem somos! E não a igreja. É Deus em cada um de nós que constrói um mundo melhor. E não o senhor abade, nem o rabino, nem o pastor, nem o diabo e nem o vaticano. Somos todos, homens e mulheres. E esta é a minha posição política, social, psicológica, racional. Só me comprometo com aquilo em que acredito. Cada um que escolha o que quiser, no seu livre-arbítrio. E isto sou eu, a debater-me comigo e com os comigos de mim, a fim de manter a minha lucidez.
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