Terças, chás e blues

 



Hoje estou a chá. Sonhei contigo. Não estavas diferente. Não estavas mais velho, nem mais amargo, nem mais louco. Ontem sonhei que os teus lábios bebiam as palavras que eu derramei nos teus ouvidos, que me narravas a distância entre as nossas peles e mucosas, entre os anos e os apêndices, entre as nossas experiências e as pausas. Ontem estava contigo, hoje estou a chá.

Sempre que te sonho, é no acordar que me vem a mágoa e a raiva. Raiva, mesmo. Nem me reconheço. E para que não sorriam ou chorem do meu pesar, engulo, emudeço, sussurro, esmurro-me por dentro, enquanto emagreço a tua memória, mas depois, meu amor, depois eu agradeço. Estar contigo, enquanto olho no espelho os meus olhos sem cor, enquanto lavo a dentuça e me desolho pela falta do teu amor. E passo o pente nos fios brancos e selvagens, noto mais uma branca na sobrancelha, recordo a maciez dos teus caracóis entre os meus dedos, o calor do teu hálito morno e doce, a tua barba mal feita, o teu sorriso ah, enlouqueço! que raio de aventura esta, a de te reviver como se foras um morto, uma memória do meu imaginário, de um luto persistente e itinerante! Segues-me para todo o lado, a visão periférica até no melro te vê, te crê possível no meu futuro ainda. 

O amor é o mais sublime dos presentes e digo isto aqui, pra mim, vezes infindas, mas és mais sublime ainda no que guardo de ti, no que preservo em mim, suprema orquestra dos deuses, permitir a uma simples mortal este sentimento de companhia que se não esgota, onírico imperador no meu mundo. E empurro-me entre as várias vezes que ela me pergunta: Cristina, hoje é terça-feira? Sim, hoje é terça-feira, outra vez e o arroz malandro de espinafres desfaz-se na boca, a dourada, fisgada no garfo corta um pedaço e pega no copo outra vez, este pera doce devia ser de litro e meio, escorrega e eu aceno que sim, rouca, pouco disposta a conversar, o sacrifício de responder, pausando a comida e as palavras, carregando esta saudade de te não tocar depois de um pera doce, recosto-me na cadeira, -quer meloa ou maçã spriega?  e oiço-a repetir que hoje só pode ser terça-feira, porque às terças, diz, os dias são sempre assim, sabem sempre a inícios de uma semana que pode ser de mau tempo, -mas mãe, é primavera, então hoje é terça, é isso, hoje é terça e sabe mesmo a terça, depois desses gomos da spriega, podia tomar um cafezinho, quem sabe, lá fora, na sombra, mas Cristina, a sombra é fria e talvez chova, se me desses um bagaço, preferia! E emudeço novamente, levo a mão ao cabelo dela, afasto-lhe as repas da frente, para que veja, pela janela da cozinha que o sol brilha lá fora, que podia levá-lo para dentro do peito, de modo a aquecer-lhe as sombras que carrega com ela, -filha, tira-me lá um cafezinho, mas carrega no açúcar, que sim, mãe, hoje é terça e dou-lhe um café, sim, mas primeiro o bagaçinho, sabes, as gentes daqui vivem mais por causa do bagaço, e eu estremeço, recordo no tasco dos Pote, lá em Castelo, os homens da aldeia beberem o mata bicho, sem verdadeiramente carregarem sombras, ou terças-feiras, ou esquecimentos, nas palavras cruzadas e dominós, - já tem doutoramento mãe, caramba, quem me dera ter vontade de cruzar as palavras, rasgá-las, inventar neologismos à dor para a fazer nova, quem me dera rasgar as minhas sombras, as minhas saudades dele! E ela pergunta-me se falo dele, o ele, se ele é o Faustino, sim, mãe, o meu filho, mas o teu filho chama-se Francisco, estás a falar do Faustino e sei bem quem é, não respondo, no meu rosto desviado prá janela, não pode ela ver brilhar nos meus olhos a dor que sinto de não o ver, nenhuma mãe gosta de ver dor no olhar perdido dos filhos. E nos olhos de pessoas já antigas como eu, além da dor se vê o cansaço e mãe nenhuma gosta de lágrimas, antes as terças-feiras, antes as sombras e os invernos nas mantas, nos pijamas, nos peras doces e nos bagaços, mas saudades de um homem, isso não existe mais, filha, já foi há tanto tempo, olha pró que te deu, esquece, esqueço, mãe, só não te esqueças do meu bagaço, não mãe, o bagaço, só metade do cálice. A loiça na máquina, o fogão lavado, o pano lavado, os azulejos lavados, o meu rosto lavado e a sombra no rosto dela, que sim, que é terça no mundo, ou pelo menos em Marecos, é terça mãe, amanhã será quarta, se não te importas, e já que não me deixas ajudar-te, vou até à poltrona do meu quarto, terminar uma sopa de letras e levo o cálice, eu ajudo-a e encaminho-a, sem que sinta os meus dedos no seu casaco de malha, curta caminhada de meia dúzia de passos para o quarto, porém difícil e frágil, manter o equilíbrio, ah estas carótidas vão matar-me, que canseira, é mãe, hoje é terça feira e está sol e ele bate aqui na janela, na poltrona, nas palavras e na memória, e pega no telemóvel para ouvir o Jabé, sabes quem é o Jabé?, mãe, não quero conhecer mais ninguém, não quero ouvir nada, mãe, mas ouves música Cristina, música mãe, música, preciso de ouvir música, mas antes de estender a roupa, de cortar as unhas dos pés, de cortar as silvas do jardim, de me ocupar, pois que hoje é terça e daqui a nada estamos outra vez no fim de semana, pois estamos mãe, se precisar de mim, chame-me pela campainha, atire-a contra a parede, contra a porta, contra o corredor, chame o Tomás, mãe, deixe-me ir agora, sim vai estender a roupa, daqui a nada tens de mudar as camas e são mais duas ou três máquinas para estender! que sim, mãe, e fujo, pelo corredor afora, como uma condenada que vence mais um ano de cadeia, fumo dois ou três cigarros enquanto tomo um café na beirada do balcão da churrasqueira, enquanto espero a máquina terminar para estender a roupa dos dias, das terças, enquanto me pergunto se hoje, terça, quando chegar a noite, te vou voltar a ver, dentro da nuvem de morfeu, e apago o último cigarro, como de um condenado, e substituo os potes da água dos felinos, encho os baldes do Rocky e da Kirie e vou à máquina retirar a roupa e estendê-la no varal, um calor bem vindo com uma brisa de vento, um alento, enquanto estendo, olhar a natureza envolvente, as árvores e toda a extensão selvagem, não há ninguém que venha cortar todas as ramagens e ervas daninhas, já telefonei ao senhor Gabino, que sim que virá, mas não tão já, as braçadas da japoneira, das mimosas, da palmeira enorme e agressiva, mas eu vejo o verde e penso que hás-de estar contente, que o sporting este ano ganha a taça, o troféu, e o céu é azul e mais logo, morfeu comunga comigo e tu és meu, outra vez, como há vinte e cinco anos atrás. E agora, são 23,24 minutos desta ainda terça-feira. E a Eva continua entre a malha, um casaco amarelo que coze já pronto e as sopas de letras, os vídeos do Jabé e da Mónica Medeiros e jura que até gosta das terças-feiras, só não gosta de me ver triste com o mundo. E eu juro-lhe, cada vez que lhe vou dar a medicação para dormir, que tudo é temporário, tudo, a tristeza e a alegria, a chuva e o sol das sombras, o campeonato do sporting, só não será a saudade que te tenho, mas isso não lho digo, guardo pra mim, não vá ela decidir me aconselhar mais chá de cidreira. Hoje bebo o chá com a música, que é o mesmo que te convidar ao meu chá, com estes blues que te são dedicados. 

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