Crónica minimalista da vida a acontecer
São sete, ainda. Bacorinhos kirianos. Olho-os como se fossem pérolas, trato-os como se fossem de cristal, e não deixo de me sentir avó. Sou avó de sete crias da minha cadela. Os meus filhos tentam arranjar pais adotivos para eles, via instagram, via conversação, mas ainda só conseguimos que dois seguissem o rumo de Baião, para dois meninos pequenos de um casal jovem. São fantásticos de bonitos e de saudáveis, trazem uma alegria de descoberta, são três machos e quatro fêmeas, dois deles da cor da mãe, areia, e os restantes semelhantes ao pai, pastor alemão gigante. A mãe é uma borbuel, magnifica, majestosa, selvagem e meiga, brincalhona e corajosa.
Sinto-me cansada com as minhas obrigações maternais, com a minha mãe e o meu filho mais novo, com a casa, com as contas, com as responsabilidades, mas saio lá fora, depois de os alimentar a todos, com a minha caneca de café e cigarrinho e fico revitalizada. No meu jardim, a vida multiplica-se, não só nos verdes arbustos e ervas daninhas que se agigantam, nas árvores que crescem sem direção, nos ouriços que se escondem dos gatos, nos pássaros que fazem o mesmo, fugindo também dos meus cães adultos, mas a vida é uma recompensa, e não importa como, tudo se equilibra entre dar e receber, entre viver e pausar a vida. Deixo-me afetar pelo ambiente, a ternura encher-me os olhos, quando achamos que não há mais nada a esperar dos dias, a não ser a sua mesmice engordar, teimosamente a persistir, redescobrimos que a vida sempre será um presente mágico.
Em breve, não terei mais do que a preocupação com tudo isto, com rações e pedidos à entidade associada à Câmara que não quer saber, porque, de alguma forma, os seus canis estão sempre lotados, em breve não saberei o que fazer da vida, mas agora, ela empurra-me pro jardim, pra uma compensação imediata e telúrica: sete bacorinhos mágicos se enroscam e se intrometem nos arbustos e na calçada, com os gatos adultos que lhes fogem ou se asseguram de se manter nas mesas e balcões da churrasqueira, nas bordas da lareira, nas molduras das janelas, de modo a observarem sem serem devorados pelos cachorros que saltitam numa dádiva de vida abundante.
A alegria que seria juntar meia dúzia de crianças pequenas aqui e vê-las se unirem na indisciplina e no esconjuro de regras parentais e abraçarem-se a estas criaturas que são olhadas de perto pela mãe, a hara kirie, que deitada, na sombra do meu carro, finge-se dormente, mas os olhos dela seguem os vultos destas criaturas, sobretudo quando uma ou outra se afasta do grupo, olha o Rocky que já auxilia nas regras aos miúdos, fingindo mordê-los, rosnando bravo, quando um deles se aproxima do seu prato, da sua refeição. Terei que arranjar pais adotivos, mas ainda não foram desmamados.
Mais quinze dias, três semanas e os meus problemas setiplicarão, e eu arrasto-me para o agora, para não pensar nesse pedaço de tempo onde talvez me falte o chão, e fico no agora, dando o rumo certo à minha ansiedade e deliciando-me nas descobertas destes putos que justificam uma alegria temporária, amigos temporários que acolho e levo ao peito, que me lambem os dedos das mãos e dos pés, que tentam arrancar-me as calças e os chinelos e que, se eu pudesse, ficaria com todos. Um dia, assim tenha eu força e dinheiro, tenciono construir um hospital público veterinário. Todos merecem ter um animal de estimação e não fugirem a essa alegria pelos custos dos clínicos particulares, um dia haverá hospitais públicos para animais, como há para pessoas, um dia.
E enquanto me preparo para estender mais uma máquina de roupa, seguindo a lista arbitrária cerebral, onde o almoço seguir-se à e a arrumação da cozinha e a fiscalização das plantas interiores e tudo o que está inerente a esta rotina fácil e abominável que resgatei para mim, me empurro para mais um café, uma água e um cigarro, que nenhum homem é de ferro, que nenhuma mulher é supermulher e o dia vai continuar, quer eu queira quer não queira. Aos que me leem, se souberem de alguém responsável, meigo e disponível para se responsabilizar por algum deste bacorinhos, diga-me por email avaloner2@gmail.com e diminuirá, com toda a certeza, o rumo e a intensidade da minha ansiedade e da preocupação que sinto com relação a eles. Boa semana e assim para todos os que ainda leem.
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