A espiritualidade faz-se presente de várias formas

 



Hoje sonhei com a Kirie, a minha Hara Kirie. Era um dia claro, como ontem, como hoje, como será amanhã. E, ao invés de o pássaro poisar na mesa, no balcão, na árvore, não! Poisou no chão de pedra lavada e antiderrapante da churrasqueira. Eu sentei-me ao lado dele, alisei-lhe as penas e ele parecia enfeitiçado. Ao fim de algum tempo de o estudar, ergui-me e voltei os meus olhos para o lugar onde estão as Pascoelas e a piteira. Dei meia dúzia de passos, encontrei a paisagem de verdes que tanto gosto. O único cenário que ainda me apazigua, neste fim do mundo, cada diz mais, cada segundo mais execrável, para mim. Suspirei fundo e o meu olhar procurou, novamente, o pássaro. No chão da churrasqueira. E vi-o. Eu estava sensivelmente a uns quatro metros dele, em linha direta. Entre nós, porém, a mesa da churrasqueira em tijolo de burro, enorme, com os seus bancos a todo o cumprimento me impediam de alcançá-lo, sem contornar a mesma. Eis que, de repente, a Hara Kirie chegou ao pássaro, bem antes de mim e vi-a abocanhar aquele lindo e enorme pássaro: fiquei cega, não vi a mesa, nem os bancos, nem a boca da Kirie, só a agitação motora de ambos, na minha frente. Penas no ar e sangue na pedra antiderrapante. Bati no dorso da cadela. E todo o sangue e penas no chão fizeram com que levasse a mão ao meu peito, sentindo-me mal. A tshirt branca com a marca da coca cola ficou tingida de sangue. A minha mão tingida de sangue. Deixei de ver a cadela. Aquele golpe, aquelas penas eram minhas. Todo aquele sangue entre a boca da Kirie e o chão estava no meu peito. Desmaiei. Acordei e eram oito e meia da manhã. A minha boca com um sabor metálico, como quando me aconteceu o enfarte de miocárdio. Bebi água. Uma sensação de perda. Sem acordar ninguém, fui à cozinha, procurar a máquina das tensões arteriais. Dezasseis, nove. Pulso a oitenta e cinco. Bebi sumo de laranja. Pus chá a fazer. Bebi duas chávenas de alecrim e gengibre. Uma fatia de pão. E senti-me melhor. Mas a imagem não me saiu da cabeça.

Mas já de tarde, já depois de apanhar e dobrar a máquina de roupa de ontem, só depois de ver o Antero cruzar o portão da saída, voltei a ver o pássaro. Em cima do capot do meu carro. Inteiro, com todas as penas, sem sangue. A Kirie sentada perto dos pneus não podia sequer vê-lo. Pensei que talvez aquele pássaro me estivesse a dizer que o perigo está a chegar. Ou, por outro lado, que estou avisada e devo manter-me atenta. Agora, já depois do jantar, agora entro no meu quarto, sento no sítio do costume e cai-me uma pena nas mãos. Olho para cima, para o lugar dos meus ancestrais, a moldura fora do lugar dos bisavós paternos. O meu coração volta a acelerar. A minha atenção dobra. Os sinais físicos e o mundo onírico. Hoje medito.

O pássaro é o símbolo da espiritualidade. A cadela era a matéria densa e negativa, instintiva, mesa, o chão, e todos os obstáculos que me separaram de salvar o pássaro é a matéria terrena. Alguém foi magoado e eu não pude salvar. Alguém ficou magoado e não soube afastar a culpa, a dor e a dificuldade em respirar. Tenho que estar atenta. Chegam sinais, todos os dias. Tantos SOS que não vemos. 


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