Abril no espelho, ontem apenas
A justificar a falta de coragem, o papel rabiscado. Que grita por mim. A dor na glote é um grito que nunca me atrevi a dar, de tão dócil eu era. Era, esse particípio passado que rastejou dentro de mim, enquanto eu permiti. A doçura pode carregar tanta ferida e nunca se deixar contaminar.
Não quero continuar dócil, quero me insubordinar contra o que vejo, quero que a minha voz e os meus soluços rasguem o véu da aparente quietude e aceitação, quero que o que me é permitido ver e sentir nos pesadelos, na vida real dos outros que não têm voz, seja insurgente e não só candura de aceitação. Quero exposto o grito dos que calam as injustiças e as arrastam, como eu, para dentro das caixas, dos guarda-fatos, das gavetas, debaixo das camas, para o semblante dos espelhos que reflete, no fim das contas, tão pouco dessa constância que nos mói o juízo. Que traz zero resultado ao que continuamos a viver. E chamamos esta dor de vida. Meus queridos, quando possuímos dores grandes, de estimação, processos mal resolvidos, não vivemos. Sobrevivemos. Os que sofrem não estão sós na dor, mas sim na escolha pela manutenção dessa dor. E damos de beber à dor, para que ela não cresça, para que não se note, para que seja algo que só esboce que estamos vivos. Somos calados, apáticos e obedientes.
Na idade média, a dor era tratada por tu e enfrentada, num queiras ou não queiras. Os mortos eram trazidos para dentro de casa, velados e honrados, olhados, chorados e perdoados, para que não houvesse gente fingindo para si mesmos que não sabia da sua partida. A tal da negação. Eram enterrados nas igrejas, nos adros, nas proximidades. Hoje, para nos facilitar a vida, esconde-se a morte, o luto, as memórias para o local mais distante e episódico, tumular, colocam-se óculos de lente escura para que não possam ver a nossa dor, ou para ocultar que nos está ausente. Que se escapuliu, como se morrer fosse algo indecoroso, vergonhoso ou covarde. Despejamos flores e velas, por contágio e duplicação, num despropósito de sentimentos, se os houver. Branqueamos o luto e produzimos doenças, limpámos as lágrimas e carregamos as feridas até que elas nos conduzam a um patamar de ausência ou, por contágio ainda, de mortalidade. Sofremos menos ou deixou de doer? Morremos menos ou deixamos de viver? Habituamo-nos a tudo, lutamos contra nós mesmos, quando aceitamos todos esses artefactos que os outros pretendem que carreguemos. Compramos vestidos e fatos a condizer com as gravatas e as bolsas do cadáver. Que humanidade reside nos lares, onde entregamos quem nos educou, que nos é oculto? Vivemos uma superficialidade afetiva que produz doenças mentais aos magotes, arrastamos o afeto embotado para um esconderijo só nosso, onde podemos controlar o seu embotamento, a sua explosão ou implosão! A nossa dor tem de estar diante de nós, tem de ser identificada, digerida, percebida, para que a possamos tratar e curar, não devemos escondê-la. Não somos crianças e não se opera magia, como tirar coelhos da cartola. A dor está e deixou de estar. Somos mestres do conformismo, derrotados pelo tempo do stress e das causas sem glória, vomitamos redes sociais e likes, somos escravos das aparências, não dignificamos os que passaram pela terra, com suor de luta e de ideais. Onde estão os nossos? Tantos Dantas na terra. Nós os apascentámos, quando não pomos em causa os quês e todos os porquês, quando aceitamos a substituição de valores. Somos o imenso rebanho da vergonha e do vazio. Encurralados num século que tinha tanto a ofertar-nos. Escolhemos os gadgets, os atalhos, a fantasia e as máscaras, os carnavais e os arraiais. Cobrimo-nos com as mesmas mantas dos Dantas, quando nos acomodamos a eles! Se a liberdade tem cor, se tem cheiro, se sabe a pedra ou a pó, se é mastigável, se é reproduzível, se se pode abortar a céu aberto, talvez nem seja bem liberdade! Somos cativos do medo de não sermos iguais, e tão semelhantes aos animais humilhados do circo, que levam porrada para obedecer, até se esquecerem de como é a liberdade. O Abril é sempre uma memória que queremos encher com a poesia de um passado romântico e que nada nos ensinou. E ainda que gritem que somos covardes, que somos alarves, fingimos não os ouvir e continuamos a abastecer para o mesmo peditório, o da escassez de sonhos. Que desonra é esta que se abate em cada um de nós e nos faz diminuir a humanidade, de sermos muitos assim! Para onde nos foge a ousadia, a coragem que arrepia e conta histórias de nós, nos almanaques, nos anais, nas editoras, nas livrarias? Onde reside em nós o milagre da vida, que se deixa enfraquecer em adversidades funestas e superficiais? Que fizeram de nós?
Ontem choveu e pela janela, entre as tempestades de chuva e as rajadas de vento que vão fustigando as ervas e os galhos, empurro estas coisas caladas que amestrei e às quais não permiti que crescessem rancores, e ao invés da tristeza do mundo, prefiro a alegria da vida, a transformação da natureza que nos ensina que um dia enxuto e cheio de pólen pode trazer rajadas de vozes que ensinam às árvores a tolerância e a flexibilidade que as mantém hirtas e belas. Os animais não temem a chuva! As árvores também não! Um outro mundo desdobrado em seres naturais (que obedecem à sua natureza interna, ao invés de lhes fugir) bem mais agradáveis e reais do que as derrotas diárias humanas. Lutas inglórias. A natureza vence-se sempre a si mesma, através dessas qualidades que os humanos tardam em aprender, em compreender, nas interações com os seus iguais.
Se é guerra que queremos, peguemos, ao menos, em armas, para fazer a vontade aos velhos do restelo, peguemos em paus e pedras e arremessemos contra o sistema que nos cala, que nos derrota diariamente, que nos enferma de utopias morrentes e anacrónicas...
Conheci homens de valor inarrável, não pelas palavras e nem pela verborreia política, mas pelos atos e pelo inconformismo, que arregaçaram mangas e fizeram. Não se encostaram nos balcões, falando do fácil, não se adaptaram ao que havia de mau, não se sentaram nas mesas para comer enquanto juntavam contas nas gavetas, nem atrás das portas, não se calaram, não se convenceram, não aceitaram, não se deixaram morrer! E iam para as ruas e mostravam de que era feita a matéria dos seus sonhos! Hoje, todos eles devem tremer de raiva, por não poderem estar aqui para fecundá-los, para lhes dar luz num parto digno. Esses homens que foram os nossos pais, avós bisavós, pentavós, bravos, autênticos, sem redes sociais, mas com uma estrutura de sangue mais forte que o aço, que não se deixava moldar pelas circunstâncias, solidários com os outros e tolerantes consigo mesmos, mas que lutavam, que sentiam e se permitiam gritar o que estava mal, não só com dois murros na mesa, mas destruindo o que estava mal, reconstruindo e elaborando croquis mais à frente, estabelecendo limites, rasgando montanhas e cruzando os deuses. Trabalhavam em prole do todo. Não olhavam para si mesmos, competindo com o vizinho. Realmente, humanos. Foi nesses tempos que foram desenhados os homens de estado, responsáveis, exigentes, que deixaram valores altos como herança! Enfrentando os problemas e não os escondendo debaixo dos tapetes. Isso não! Onde está a fibra deles no nosso ADN? Para onde se sumiram as padeiras de Aljubarrota? Em que parte do nosso corpo e alma reside a humanidade?
Dá-me a ideia de que somos reflexos de mentira, sombras aparentes na forma. Onde mora esse conteúdo que lemos nos livros de história? Somos rebanhos de Dollies, clonados, superficiais, vestidos com fatos domingueiros todos os dias, como se todos os dias fosse domingo e não o dia da nossa covardia. E multiplicamos cartazes e partidos, orações e contrariedades, receitas e indignidades, colorindo tudo com o atalho da felicidade. Como se a felicidade pudesse conviver com a nossa falta de verticalidade! Replicamos o bê-á-bá dos erros e não as injeções de coragem. Somos fastio, palha empalada para o gado.
Para que nos servem tantos séculos de existência, se o capital, mais do que o sangue, governa o mundo onde somos meros escravos? Escravos da imbecilidade. Digam-me, o que vai ser dos que cá ficarem quando partirem os Keith Richards que já somos todos? Qual a herança que deixamos, se não são valores, se não é paz, nem amor, nem respeito e nem tolerância? Se é só competitividade, não será melhor clicar já no botão e resolver o assunto? Hipócritas a contribuírem para guerras, sem nem pensarem no rebanho de inocentes? Gaza, Ucrânia, Congo, Nagorno-Karabakh, Síria, Iémen, Tigrê, e sei lá quantas mais.
Se não sabemos lidar uns com os outros, como nos atrevemos a querer destruir outros planetas? Se não sabemos nos curar como nos atrevemos a infetar, a condenar, já de nascença, os infelizes que continuamos a trazer ao mundo? Não é só amar e multiplicar. Porque necessitamos multiplicar o amor e não o avesso. Para quê tanta religião que vos ensine o perdão e a ética, se tudo o que nasce das vossas práticas é guerra, ódio, inveja, mentira, fraude, opulência, oportunismo, tristeza e desunião? Quem definiu o mundo, o nosso, este onde vivemos como humanidade, se quem nos governa é o seu avesso?
Levo a dor de todos os que vejo comigo, para onde vou, para a cama, para o campo, para o supermercado, para o raio que me parta, porque os olho com olhos de ver, porque me importo o que sentem, o que pensam, o que sonham, juro que tento desmontar a dor alheia, entendê-la, virá-la de ponta para baixo, pendurá-la, espremê-la, e tudo o que me ocorre é que não é fingindo, não é enganando, não é protegendo a mentira e a corrupção, não é contribuindo para as diferenças de oportunidades, não é alimentando os deuses da guerra e do capital que iremos mudar o sistema. E isto, tudo isto é gangrena, se não tivermos a coragem de decepá-la enquanto é tempo! Olhar a merda do espelho. Ver o que produzimos. E não cheira a liberdade, mesmo sendo abril, não sabe a felicidade, mesmo que venha bem entrajada, não é bonita, mesmo que maquiada. Não, não somos dignos enquanto não operarmos a falta de amor ao próximo e priorizarmos o outro, que somos nós. Enquanto não zelarmos pelas espécies que connosco habitam, enquanto não protegermos os mais fracos, enquanto não crescermos nos ideais. Bem sei, as aparências podem mais. Mas não falem de abril nem de poetas, nem da dor que desconhecem, nem do sistema viciado, nem das fragilidades humanas, se nem sequer vos indagais o que fariam os vossos ancestrais, se pudessem, se cá estivessem. Fogos fátuos, frugalidades, sucessos perfunctórios e solenes. Poupai-me ao vosso teatro de segunda.
E como dizia a Mafaldinha do Quino, parem o mundo que eu quero sair.
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