Com partida adiada

 





O comboio passou. Na linha três. Por destino o longe. E eu que entrei nele inúmeras vezes e me arrependi, saindo na estação seguinte. Mais velha, mais cansada. Já não entro neles, mas dirijo-me sempre para a gare. Sento-me no banco. Olho as pessoas e os carris e chegam comboios e vão comboios, mas eu não. Perdi o atrevimento. A coragem. A ousadia. E então, fico ali, observando o jogo da vida dos outros que chegam e têm alguém que espera. Ou que não. E caminham apressadamente. Creio que por vezes, tal como a mim, lhes falta esperança para acreditar na espera de alguém. O olhar derrotado, olhando o chão cinza e calcado por milhões. Outros caminham devagar, tentando conter os passos, como se não tivessem pressa de chegar a casa, a lado nenhum, como se a gare das estações fosse o lugar mais amistoso para repousar o olhar. E outros chegam e se sentam na esplanada, com sorrisos de canto a canto, procuram na bolsa, nos bolsos apinhados de tudo, o dia de ontem, guardam o troco, sacodem a gabardine. O comboio chega na outra linha e correm, esbaforidos até alcançarem a certeza de não serem deixados para trás. O rapaz carrega o saco da tropa. Talvez leve esperança num saco pesado. Ou fardas e farnel das mães, ansiosas e sempre generosas. Ou a fotografia dela, dessa ela que lhe beija os olhos, garantindo que não vai respirar até que ele volte. Esperando-o. As mães também vão para as estações, carregando cestas e corta ventos. As mães têm sempre um lenço, um guardanapo para limpar a boca ou o nariz dos filhos, do gelado, do chocolate, do rebuçado. As estações são lugares de partidas e chegadas, de esperas e de encontros e de desencontros. São feias na espera e bonitas nas chegadas. Podem lavar-se se houver anos de espera ou até meses para as voltarmos a ver. Os comboios fedem quando vão cheios e quentes, carregados de alegria ou cansaços de fim do dia. Quando os esperamos por muito tempo, parece-nos sempre o último a chegar, os seus assobios desejados podem acalmar o coração para quem espera a chegada, para quem parte de saída para longe das dores. São vultos avisados, atrasados, também eles cansados e conduzidos por motoristas que desejam o banquinho para os pés, o fim de linha por hoje, por esta semana. Nos fins de semana, os bancos estão repletos de gente em espera. Nesses dias, procuro ir mais cedo e até tento acreditar que vou ter a coragem de o acercar e entrar nele. E penso, simultaneamente, nas muitas vezes que o fiz e me obriguei a sair logo depois. Já vi muitos como eu, sem coragem e sem alegria, que jogam o saco nos bancos e se atiram em pensamentos desesperados para um final de tarde longe, junto ao mar ou a um qualquer rio que nos pode abrigar nas margens. Este senhor que passou por mim, levava na mão um papel e maneava-o entre os dedos, como se distraído, não viu ninguém ou talvez visse de soslaio, permaneceu desinteressado na paisagem e alheio a si mesmo, nos pensamentos que carregava. A mulher dirigiu-se a ele e agarrou-lhe a mão, obrigando-o a largar a distração e a enfrentá-la. Ele tirou o chapéu e ela o papel das mãos dele. Ele não protestou, não contestou, mas ficou apreensivo. Depois de olhar o papel, guardou-lho no bolso da gabardina, meteu o braço dela no braço dele e foi dirigindo-o para a saída da gare, onde a luz rebentava os olhos e passaram a ser vultos difusos como o são os comboios antes de chegar à estação. Antes, as gares eram lugares mais românticos, agora são mais poisos dos tristes que tentam encontrar nos carris um descanso que lhes pause o coração, o sítio onde chegam esses grandes veículos que nos levam e trazem para destinos sempre iguais e onde os seres se multiplicam e se apressam, como se não chegassem sempre de hora a hora, como se fossem raros, como se talvez, ao perderem aquele, perdessem todos, alterando os fatores verdadeiramente importantes de vida, modificando os seus interesses ou as suas vidas. Há comboios que nunca partem e outros que nunca chegam ao destino. E vidas colhidas por eles que nunca são esquecidas e outras que se diria que nunca existiram antes do embate. E eu volto lá sempre, esquadrinhando as linhas como perspetivas de escolhas humanas, apalpando a falta de pulso e de ousadia, a ausência de vida dentro de mim para apanhar aquele comboio da linha três que me levaria, quiçá, ao meu destino desejado. 

E deixo que eles passem como passa a minha vida, que esbaforem como se fosse eu nos suspiros que acompanham longamente o bater do meu coração, e nunca me deixo sossegar, porque não aceito a minha inércia e o meu medo dos comboios da linha três. E o quiosque da entrada que fica sempre na saída para muitos vai vendendo as notícias antigas e novas, todas misturadas em fragmentos diários, avulsos, como são as vidas quando se desencadeiam do seu formato original e se prolongam nas vidas que tentamos adivinhar. Hoje o dia tem sombras, o próprio edifício está ensombrado pela falta de alegria nos semblantes dos outros, os comboios chegam todos atrasados, dizem que há alguns comboios suspensos e outros estagnados. Falam nas greves dos motoristas que precisam de melhores condições de vida, que desejam mais bancos para os pés, que têm esposas em casa, dedicadas à chegada deles em casa, que merecem fazer férias, nem que seja uma vez por ano, mas sem usarem o comboio como meio de os levar. Eu gosto de comboios, sobretudo os da linha três. Se não houvesse essa linha, talvez eu suprimisse a minha vinda quase diária a esta estação, se não a houvesse, talvez os meus dias fossem mais entediados, ou talvez eu própria fosse mais corajosa e encontrasse uma forma de matar o sonho, num carril fora dela. Quando chega a hora de atravessar a saída da gare, penso sempre que amanhã não virei e se conseguir evitar de o fazer, talvez até consiga fazê-lo para sempre.  Entretanto, já vejo a sombra do dia agigantar-se, acompanhando a minha saída da gare, as passadeiras escurecerem, as pessoas mingarem nos sorrisos e no discurso, os sacos e as malas desaparecerem das suas mãos, só com esse pensamento tão meu e tão longo na sua estadia dentro de mim. O que farei eu, se não vier amanhã visitar a linha três, os comboios que estacionam ali, que conheço de cor, os rostos costumeiros dos bravos e distraídos que lhe entram e saem sem nem darem conta que aquele comboio que risca os carris da três me leva e me traz sem nunca abandonar o banco, a covardia, a ausência de força. E caminho, empurrando-me para fora daquele percurso que me prende há tantos anos e tento imaginar que algum dia vou ser capaz de resistir a ver morrer a minha esperança, a minha fantasia, impedindo-me de caminhar até ali. O que farei comigo depois disso é um outro pensamento que não me apetece carregar mais. Ou, por outro lado, talvez eu volte, amanhã não, será ainda cedo para ganhar força e coragem, mas quem sabe, depois de amanhã possa fazê-lo, entrar na gare, dirigir-me à bilheteira e sem gaguejar, pedir o bilhete de ida para a linha três, mas sem volta à gare, sem volta ao lugar, à casa, à mesmice que me traz acorrentada, à apatia deste velho eu que se quer destituir do medo, e, talvez eu ganhe essa vida nova, talvez se me desdobre o sorriso, talvez recupere a minha alegria, talvez entenda que não preciso mais de me desesperar com aquele comboio, se, ao menos uma vez, tiver a capacidade de vencer este medo antigo e me deixar ir até ao final do percurso da três. 

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