Cristina Guedes
Exercício literário Da Maria resta a solidão
O casaco pende-lhe aberto, o macho sobre o cóccix. Roçado de um azul-marinho em extinção. Chamam-lhe de Beco mas o seu nome próprio é Luís. O olhar cansado de quem já mondou demais e mandou outro tanto. Diz que tem um bom pé-de-meia, mas chora quando fala dela. Ela, a Maria que Deus quis chamar há pouco. E parece-lhe que é, já de muito tempo, esta dor esgaçada entre a garganta, apinhada de soluços contidos e, o coração abeirando a solidão. Por causa dela, esqueceu as punhetas de bacalhau, os jogos da malha e do dominó, os vizinhos, os filhos, os netos. Que mais podia querer da vida senão aquele sorriso que ela lhe usava dar desde que raiava o sol até que se escondia a lua, debruçada nas almofadas dos dois'? Dele, que ela já não precisa de altear a cabeça, de descanso tem ela uma vida de morte pela frente. Dizem que os mortos não falam, mas daqui do meu sítio, avisto-o e vejo-o gesticular e, da boca devem sair desesperos e ais e, quem sabe, cantigas que a Maria cantava. Já não lhe apetece o cavaquinho e nem o palco, que o negrume da ausência dela crivou. Não sabe escrever uma letra e nem contar dinheiro mas sabe que tem muito, mais do que queria. Ah, se lhe pudesse comprar a passagem de vinda dela ou da sua própria ida. O chapéu cai-lhe nos olhos, propositadamente, que lhe interessa ver as coisas do mundo se um mundo de coisas lhe foi roubado? Não sabe viver sem ela. Nem soube morrer com prontidão. E fica na espera, chutando calhaus e sorrindo um choro a que apetece dar colo. Colo é o que ele não quer. A piedade dos outros exaspera-o. E analfabeto sim, mas orgulhoso, até quando fala dela. Ela, a Maria que se finou.
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