Cristina Guedes

 


Exercício literário Guia de Marcha

A Dona Maria, a irmã do Lúcio, está em agonia. Também o Luís de Beco. E os muitos filhos. As dores não se removem pela boa vontade dos homens, pela ida à farmácia e os doutores dizem que é uma questão de tempo. O tempo da negra mancha que virá, não sabemos quando nem como e nem porquê, escolher o nosso corpo para dar a machadada final. Queremos agarrarmo-nos à ideia milenar de que do outro lado um anjo nos espera ou que, por outro lado, tal mancha só surgirá quando tiver manchado todos os outros, porque a nós nos foi dado o olhar imortal sobre a mortalidade dos outros. E o cansaço das agonias e o receio do desconhecido preenchem os segundos, enquanto o olhar dos outros perscruta o nosso e encontra o vazio. Nele não se pode ver medo, nem sombra, nem nada. Porque a bem dizer, estamos tranquilos, nesta aparente tranquilidade da aceitação. Aceitamos porque não conhecemos outra forma de vivenciar essa grande finale. -Que lhe apetece hoje? Uma canjinha com galinha velha? Ou uma maçã assada? Beba, beba esse iogurte, tem vitaminas. Dizem que pode prolongar a vida, é da Longa vida. Ou agros, que diferença faz? Ajeitam-se as almofadas pela enésima vez. Que havemos de fazer com a nossa impotência? Temos de lhe dar utilidade. As mãos caem inertes e os suspiros saem amargos e compridos. Os contrassensos crescem neste período. Em que não lhe apetece ver ninguém. Nem estar consigo. O adormecimento letal virá sem hora marcada e se, às vezes o deseja, outras tem em que o deseja aos outros. Porquê eu? soa sempre como uma praga despregada, sem rosto ou intenção. Mói-lhe o juízo, que tem de comer, que saco roto não fica de pé. De ver limpar o que está limpo. E ela nem forças tem pra lhe gritar: deixa que o pó se acumule. Deixa isso. Olha pra mim, porque te restará poucochinho a avaliar pelo que sinto nas minhas entranhas. Nem me quiseram para quimioterapia. Nem para estudo. Vê quem cantou e dançou tanto nesta vida. E dizes que sou bonita e dás-me a tua mão, porque a juventude ainda te assiste. Porque não sabes o que é ver sumir a esperança de participar da vida. Que te corre nas veias. Que te incha as mãos no verão. Tenho medo de partir. Estou a gritar-te este medo, mas nem dás conta. Porque nos meus lábios vês o mesmo sorriso amarelo, esbatido e tão gasto como esse pano que carregas pra todo o lado. Apetece-me dizer-te que gosto de ti. Que vou estar aqui sempre mesmo quando a outra me vier buscar e for ensaiado o registo fúnebre. Em que te despedirás de mim. E os outros, todos os outros, que me habituei a amar. Todos os outros que viveram comigo ou sem mim. Todos os dias me deito nesta mesma posição, com o sol alto lá fora, ou a chuva certa a bater contra a vidraça. Todos os dias enquanto vos vejo a cozinhar, todos os malditos dias em que me dói tudo, eu me despeço de vós. E até dos pássaros e das plantas, que lhes sinto a falta. Se me perguntares se ainda acredito em Deus, dir-te ei que preciso dele para continuar à espera. Porque a vontade que tenho é de berrar com ele. Mas aceito que Deus exista sem tempo pra todos os fiéis. E que a fila onde me encontro vai parecendo que nem se mexe. Ainda bem. Porque de um momento para o outro serei eu e, assim sem dar muito conta disso, vai, por certo doer menos. Não é medo da morte. É o desconhecido que chega e não traz um sorriso nos lábios de boas-vindas e nem nos pergunta o que achamos, se estamos preparados ou deixamos algo inacabado. E nos rouba à existência que era nossa e também dos outros. E nos leva sem volta. Dizem que a ver a luz. Entretanto, já andam à roda do fogão, quase que em pezinhos de lã, como se o silêncio não incomodasse mais que todos os ruídos da vida a passar! 

- I learn a prayer to you

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