Cristina Guedes





Exercício literário  O negrume dos dias


Encosto-me, recosto-me e volto a levantar-me. Chegam-me aos ouvidos o som dos camiões na nacional misturados com os meus suspiros cortados pela respiração urgente. Sinto-me a asfixiar. Preciso nem sei bem de quê. Estou no escuro, apesar do dia claro e do calor tórrido. Apesar de toda esta sombra onde estão as nossas cadeiras colocadas. Nossas. A minha e a tua. O tanque não me permite ver o portão dos Mochos. Mas sei que está lá. E se eu fosse bater ao portão? Mas...e se incomodo? Não, volto a sentar-me e trilho uma erva entre as mãos. E olho-as, como se não fossem minhas. Como quem olha pela primeira vez pra si mesmo. Sinto-me estranhamente vazio. Como se esta erva que tenho entre mãos fosse mais viva, mais eu do que eu . Desde que partiste que não me sinto. Não durmo, e só como alguma coisa obrigado. Cansam-se de me pedir, de me mendigar que exista, que coma, que durma e que descanse. Não quero nada disso e nem sei bem o que quero. Que descansar tenho tempo quando partir, como tu. Tu, que ainda ontem eras minha, que eras tudo o que tinha pra amar. O Quim esteve aqui no fim de semana, a Nela tb, aliás, todos têm estado aqui mas não os vejo. Quero sorrir-lhes mas só me saem suspiros da boca e ais de uma existência absolutamente vazia. Os nossos filhos não entendem, fechados que estão nas suas dores, vão tendo os seus próprios filhos pra cuidar, uma vida de companheirismo e família, o outro/a e não podem entender que tu me guiavas as horas. Que sentido existe neste inferno sem a tua presença? Os pássaros continuam a cantar mas já me irrita a sua alegria. Deveria ser obrigatório fechar o coração aos dias que se seguem da tua ausência, Maria. Fazes-me tanta falta! Que me importa que a Bina continue a limpar o que está limpo? Não te preocupes, não nos pegamos mais. Porque morri quando te vi descer à terra, porque é lá que ainda estou e ninguém me entende e nem eu quero que me entendam. Esse é um esforço a que não obrigo ninguém. Avisaste-me tantas vezes: Quando eu for, terás que tomar conta das pencas, dos haveres e do tempo que te restará com saúde. Quando eu for, tenta chorar ou ficarás pior. A vida são os outros que ficam. E eu, que não sabia o que havia de fazer com as tuas dores, chamava-te tola e pedia que não dissesses disparates. Mas eu neguei sempre a possibilidade. de me morreres Não percebo como nessas palavras de condenada, podias continuar a resistir a tantas coisas que as dores e a família te trouxeram. Maria, não me sinto mais que uma extensão tua, um apêndice que se esqueceu de mirrar em simultâneo contigo. Não foi surpresa a tua morte. Mas o meu entendimento dela. Não posso aceitar que não vá ver-te sorrir só pra mim outra vez. Que não me vás dar ralhetes na hora certa! Não sei viver depois de ti. Não sei morrer sozinho. A erva jaz morta entre as minhas mãos que apalpam o que resta dela. Os nós dos dedos estão brancos e as minhas mãos inertes e cheias de calos dos anos de campo não mostram a alegria que viveram ao lado das tuas. A imensa alegria. Cantavas pra mim e eu tocava como se fossemos os únicos seres na terra. Estão guardados os cavaquinhos, as violas e todos os teus trajes e nem me atrevo a pedir a ninguém (nem a mim, vê lá tu) pra ouvir a tua voz. Não saberia ouvir-te. Desmontava-me em peças nos soluços que a tua partida me provocou. Que terrível é amar? Que terrível é perder o amor? Maria, leva-me contigo. Maria, vem buscar-me. Maria, Tu sabes que não faço falta, que me fazes falta e que perdi a identidade quando te foste. Considera este pedido.

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