Matza di Lourde
Este lugar teu!
Como diz a Mafalda Veiga, ficaste neste lugar onde só
chega quem não tem medo de naufragar.
O teu amor de descompromissos era um pássaro sem gaiola.
O teu sorriso uma armadilha contra ti mesmo.
O cansaço vencia-te. Os anos enganavam-te. Falavam de mudanças
climáticas do planeta, da maçonaria, das ordens religiosas,
dos abismos dos outros, das contas bancárias, dos homens
que planeavam salvar o planeta e dos médicos, dos casos de
tuberculose, do colégio dos filhos, da sapataria nova junto ao
quiosque onde usavas comprar os teus jornais, falavam-te da
chuva e do sol, da política mundial sonegada na ditadura e dos
santos beatificados. Os anos falavam-te da solidão dos outros
e arrepiavam a tua.
Que mantinhas convenientemente afastada, falavam dos teus
cabelos brancos a espreitar nas têmporas e dos mistérios nos
corações das mulheres que fingias amar na pressa de
acompanhar o tempo e na mulher que te esquecias de amar.
O predador das almas acompanhava-te sempre (ou quase
sempre) num relógio de marca.
Molhavas um cigarro de expectativas e perfumavas o ambiente
com esse tabaco antigo ritz, de embalagem branca e vermelha.
Pensavas nessa altura que ele não te fugia. Que te não matava,
como a todos os outros mortais. Os anos não te revelavam o
amanhã, mas prometiam tantas alternativas. Qual escolheste?
Vinham-te aos olhos molhados, no passado, imagens que não
sabes se inventadas ou reais, se sonhadas ou construídas num
dia claro. Pareceu-te que o cansaço tomava conta de ti, de uma
forma desigual de todos os outros cansaços, de outros dias e
outros anos. Pedias um colo doce sem questões, disponível,
sem tempo e sem idade. Pedias, porque te mordiam as costas,
uma mão que te coçasse o "mais acima ou o mais abaixo, aí,
nesse sítio" e um pouco de água pois a tua sede crescia nas
verdades lá de fora. E tu olhavas o espelho e pensavas que a
verdade podia bem ser a tua. A que construíste para ti no
avançar das estações. Morreste a ler Tolstoi. Alguém,
li alguém, ainda há pouco, que acrescentava que as estações
dos comboios são românticas porque ninguém por lá fica. E tu
foste ficando agarrado como terra às raízes das falsas verdades,
dos falsos positivos, das máscaras, dos palcos, das plateias,
das deixas, dos holofotes, dos atores, dos contra-encenadores,
dos ensaístas, desse mundo de luz obscura que inventaste
no palco da nossa vida. Um cenário, o único:
- Uma cadeira, um pedaço de chão, um relógio a marcar o
tempo de Molière.
Pausavas o cigarro para dares mais uma dentada por engano
em mais um naco de carne e sentires: Estou vivo. Não, não é
assim. Apenas semelhante. Porque morreste por viver tanto, pai.
Quando te conheci, há muitos séculos atrás, dizias que eu era
uma menina abençoada. Porque te desconcertava. Te dizia a
verdade. Te questionava. As tuas respostas satisfaziam as
minhas questões ambiciosas. E perguntei-te de que eram feitas
as pessoas, porque achei que se eramos luz, cabiam na nossa
barriga estrelas e sóis e tu gargalhaste da minha estupidez.
Não fui eu que disse que eramos feitos de luz. Mas o padre,
numa conversa de café.
Tu chamaste-me poeta, não estúpida. E o meu orgulho
acompanhava as nossas conversas. Morreram tantas pessoas.
Tu também. Morreste em silêncio, porque te cansavam até as
palavras. Ou porque tinhas chegado ao Nirvana dos homens
bons, mas cansados. Viveste na ilusão de cavalgares o tempo
e foi ele quem te roubou de mim. Ou, antes essa verdade de
um homem que se recusou vegetalizar só porque possuía
uma deficiência na válvula mitral, na aorta, dentro do peito e
uma condenação na alma a gritar-lhe: estes são os últimos
dias de um condenado. TU. E eu que fiquei no doce embalo
da tua voz, na esperança de que essa morte
fosse passageira, um Alfa que apanhavas para ires viver
movimentos activistas da política de oposição. Não importa
agora. Bem sei, paizinho. Fiquei à espera de Avalon, que me
prometeste... limitaste-te a naufragar numa vida
que eu já não posso viver por ti, contigo. Deixaste-me à
margem dela. É aí que ainda estou, pai. Nesta margem.
Faz-me uma ponte, please. Traz-me tu Avalon.
Ensina-me a viver sem te esperar.
in Domingos no Mundo, Edições Pai
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