Exército de Crisálides
Ainda havia tudo para se fazer. Tudo o que alguém poderia querer ver realizado. Florescer jardins era coisa do divino. O jardineiro apenas servia, uma espécie de mordomo dos céus, instrumento do alto, aparando, podando aqui e ali, abrindo espaço às urzes, afagando as begónias, as roseiras pálidas e paixão subiam pelos esteiros. Bem-me-queres e margaridas. Orquídeas e tulipas e crisântemos, hortências e violetas, sardinheiras e cravos, girassóis e jacintos, flores de lótus e gardénias, magnólias. Carvalhos e azinheiras, todos os frutos desejáveis. Os ciprestes fechavam o sítio, como anjos vigilantes, guardando a casa. Sem paredes e nem telhados, sem esconderijos e nem resguardos, tudo era transparente de intenções e claro de verdades.
Era cedo demais para encerrar as suas esperanças, pois uma vez semeadas, elas já não dependiam mais da sua vontade, ganhando vontade própria, alicerçada na fé. A fé era, ao fim e ao cabo, o seu fertilizante. E, ela sabia que esse fertilizante não terminava, não esgotava, mesmo quando os dias se somavam tristes e escuros, de tal forma que, apenas um risco de sol, iluminava caves onde se resguardava, a ela e às suas sementes. O teto eram as estrelas, Cassiopeia, Tamaquaré, Cefeu, Andrómeda e Poseidon plantara-se entre eles. Que saudades do mar! Esse grande gigante que se espelha no céu. No jardim de esperanças, havia uma fonte de água cristalina que chamava borboletas e todo o tipo de insetos, vida que se espelhava naquelas artérias, tal como larvas, de aparência morta. A morte, ela sabia, era a maior fantasia e, quiçá, a mais feia tecida pelos humanos. Não era o ortónimo de realidade, antes a fuga para a frente e, imbuída, a desculpa para non fare niente do mundo. Empurrado por séculos de gerações que, no contar um conto, acrescentavam o tal negativo ponto para chegarmos aqui, a este vão de desesperança e combate. Destituir as errôneas crenças, tirar-lhes voz e pedestal. Era tarde demais para olhar para trás. Era tarde demais para esperar dos outros, quais outros, ensimesmados em si mesmos, perdidos na vida dos outros, de indicador apontado, como que, se perdoando a si mesmos, pudessem apontar o outro, ao outro que era sempre o julgado.
Nesse jardim, os humanos necessitavam entrar com espelhos laterais nos olhos e nos ouvidos, na boca e em todos os sentidos, para que, ao invés de julgar levianamente os outros, olhassem para si mesmos e, quando muito, os pudessem corrigir no voo, na esperança, no saciar da fome e da sede de humanidade. Não esta humanidade que resulta no seu oposto, mas o seu complementar, de me preocupar com o bem-estar comum e não somente comigo e com os comigos de mim.
No devaneio e na expectativa alta que me propunha, não havia lugar a ferocidades, tão pouco a vaidades comezinhas. A vida já tinha tantas ervas daninhas que a minha maior preocupação era manter o sonho, a luz acesa, a voluntariedade de fazer a diferença e não ser parte da equação que nos mantinha no problema, na desilusão. A solução para sermos gambiarras na vida dos outros, faróis acesos na tempestade da costa, inspiração nas noites perdidas de sono, era mostrar a sacralização da vida, espuma de orvalho e fertilidade que se recusa a ser derrotado pela secura de outros sóis. A fé desmontada, nada mais era do que esta estrada onde me via seguir, na minha jornada de vida, abençoada pelo acima. A fé, grão de mostarda, afinal, era o maior edifício entre o céu e a terra, nenhum homem poderia destruir, qual crisálida kafkiana, que esventra o casulo e se dá o milagre de nascer para o outro lado de si. E até mesmo as plantas e a sua fotossíntese se espelham nesta doce transposição, cumprir a vida enquanto rasgamos o mundo.
Ela, então, dedicada e apaixonada pela seiva de humanidade, resguardada pelos anjos e apupada pelos seres desumanos, crisálida e constante, elaborou um plano B para que as tentativas goradas de outros iguais a si não pudessem obstar nesta nova equação. No plano B, só possibilidades e certezas. Tratar-se bem, podar bem os seus galhos, alimentar-se de fé e percorrer o mundo, distribuindo a esperança, a todos, mas, sobretudo às crianças. A vulnerabilidade é força quando somada à constância e subtraída ao crer dos outros. Eu creio, eu adubo-me, eu casulo-me, para então, qual guerreira, semear nas gerações mais jovens e mais frágeis esse amor que vem de cima.
E eu grito acima e recebo abaixo e, de joelhos, agradeço. Ao futuro não conheço, mas é algo que vou tecendo devagarinho, nos intervalos de lágrimas e leitura! Viemos para acrescentar, para somar! Viemos, afinal, servir, depois que nos restauremos a nós. Eis que chegou o tempo de formar o exército da boa vontade. Não é a religião o ópio do povo! O ópio é outro e chama-se crer. Amor, providência, estabilidade, esperança. Servir a um propósito maior. Não o da servidão e do servilismo, ao contrário, o seu oposto!
E quando acontece, chama-se realização. Foco-me nela, então.
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