A minha biblioteca

   




Exercício literário de beleza

A minha biblioteca é uma estante do tamanho da minha vontade de ler
Dizem que só se pode escrever com sentimento e rigor na posse dessas faculdades, sejam visíveis ou, por outro lado, sentidas.
A minha biblioteca tem uma parede de madeira de dois por três e uma fundura de meio por um e meio. Não é muito, mas não é pouco, também. A madeira é de linhas suaves e escuras, os nódulos da árvore são vários que se detetam à primeira vista. Cheira a madeira, sente-se robusta e rústica e tem vários compartimentos para enciclopédias e livros estranhamente grandes, sem terem de ser grandes livros. A história não é feita só de grandes eventos ou de grandes vitórias. E as enciclopédias conseguem traduzir um sem número de temas que vale a pena condensar. Assim devem pensar as editoras que os publicam, assim penso eu. São várias prateleiras de dimensões várias, para acobertarem, protegerem e evidenciarem cada livro e lombada, cada autor, cada ilustração de forma a poder ser avaliada e tomada, em qualquer altura do dia e da noite. Cabem nelas autores como Shakespeare, Camões, Hemingway, Boris Pasternak, Máximo Gorki, Galileu e Platão e até Jean Paul Sartre. Pepetela e Agualusa convivem com Nabokov e Lobo Antunes, como se sempre tivessem crescido juntos. Ali não há conflitos, nas fileiras dos livros.
Os dados estão lançados em direções onde tal não se podia prever. Autores nacionais e autores estrangeiros, conhecidos e ilustres a conhecer, todos se dispõem a meu bel-prazer, nas minhas estantes. E quando me dá o 31, lá vou eu limpar as lombadas e dispô-los no sofá, para voltar a guardá-los, a senti-los, nas prateleiras, com algumas alterações a que os próprios não fazem caso. E se fizerem, nada me contam. Na minha estante, os livros não são livros, mas gente que se mistura viva entre mortos, fantasmas entre sombras da minha própria vida e dos espaços temporais em que foram lidos por mim. E há alguns deles, não muitos, onde volto, sem pedir licença. E me voltam a contar a recitar e a lembrar que somos feitos de tudo, tal como eles, do vivido e do esperado, do conhecido e do nunca vislumbrado, de histórias e de estórias, de epopeias e breves episódios de vida comum, seja em registo biográfico ou com acervos de pintura e ilustração. Muitos foram comprados e alguns, bastantes, oferecidos e não é por isso que falam mais ou menos comigo. Porque todos os que lá estão me falam. Choram, lamentam, evidenciam, castram ou acrescentam mais a mim e à minha própria estante, que se vê casual e se envaidece nos dias dos meus momentos 31. Mas, o mais curioso é que a minha biblioteca é perfeita. Não porque contenha livros perfeitos, mas porque traduzem a própria vida, a geral, de todos e a particular, de cada um de nós. Já teve mais livros e se perderam quer do interesse, quer do espaço, quer dos limites das minhas opções. Ou por extravio e empréstimo, ou ainda por claro desinvestimento da minha parte de leitora. São, no entanto, reduzidos os que se foram, por esses motivos. Já tive de voltar a adquirir dois ou três imortais que não tiveram caminho de volta. Agora, claramente, a trabalhar no processo de desvalorização do ter, de desprendimento de posse, associado a um outro de partilha, alguns vão, outros que são ponderados ir, ficam. Não há um código formal para os que ficam. São da casa. Esse é o código implícito. Outra qualidade da minha estante é a dos calaboiços ou hiatos que se abrem através do toque em determinado espaço, onde saem e sorriem outros, outra qualidade de literatura, a poesia. Guardada a sete chaves e tocada com minúcia. São vários os autores que lá desfilam e contam-me imensas vezes vidas e sentidos, pessoas e sentimentos lá guardados, perspetivas e sedutores enredos pessoais que, depois de serem alforriados no prelo, são de todos e meus também. O autor só os criou, mas a criação desapossa-se do seu criador e amplia a vida de todos os que por lá metem os narizes. Às vezes é a alma toda que lá entra. Como O meu pé de Laranja Lima, ou o Principezinho, o Fazes-me falta ou o Desassossego, o Germinal e a a Borboleta ou as Lições de filosofia, o Estorvo ou Tanto barulho para nada. Tem uma área mais secante que aprendi a amar, a técnica, onde mais uma vez os temas se misturam aos autores e essa Gestalt traduz a minha paixão por matérias associadas a uma área ou a várias interdependentes. Daniel Sampaio, Machado Vaz, Pio de Abreu e Óscar Gonçalves e Paulo Freire e o Dsm IV enfrenta ICD 10 e outros menos limitantes e mais colaborativos, como o Rorschach e outros elementos projetivos. A minha estante brilha, mas só eu é que vejo o brilho dela, através das lombadas onde os nomes dos autores se misturam á cor e aos títulos desalinhados em caracteres e negrito. Acredito ter uma qualquer apreciação e cuidado na disposição de autores e títulos, mas na verdade, o que me diz a prática é que nunca estão onde eram supostos. São critérios que abandono para tomar uma história ou retomar uma leitura. Embora estes segundos sejam mais fáceis de se dar com eles, pois encavalitam-se fora da estante, pelo chão, mesas de apoio, secretárias, camas e cantoneiras onde prometem não se demorar. E demoram. E deixo que demorem. Às vezes sorvidos ao acaso ou surpresa de presente e outras, devoradas com urgência e fome. Os livros podem ser companheiros de jornada. E são-no, na sua maioria. Compreendo que os animais são os melhores companheiros de todas as vicissitudes mundanas, porém, também acrescento que o livro transporta esse sentimento. Quantas vezes os olhos com uma imensa ternura, por tudo o que acrescentam a mim e aos outros, à minha perspetiva e à diferença que ela faz no todo. Aos autores não estranho, ao contrário, os sinto íntimos, que os conheço, que não me inibiria de dialogar com eles acerca de um ou outro personagem, uma ou outra dúvida. Na verdade, sou uma facilitadora de afetos entre os livros e os autores. E para mim, são todos grandes, pois partilham algo muito seu com o mundo inteiro e é, nesse atrevimento criador que, os gosto e os entendo iguais a mim. Não há apanágios a um só autor, nem celebrações especiais. Penso nisso, quando penso neles e todo o mérito é esse, o de partilhar com os outros o seu mundo interno. O maior mérito é esse. Doam-se a nós que os lemos, sem qualquer escapatória ao processo. Mas a minha estante, porque é perfeita, alberga todos de igual modo, sem preconceitos ou descriminações. Essa qualidade nas pessoas é grande, mas nas estantes é maior ainda. Por isso, algumas estantes se obrigam ao uso da parangona LIVRARIA. A minha, não. É de uso particular. Esta estante ora cresce, ora minga, ora se transforma, por vezes, no sítio mais próximo aos meus afetos. E os nomes bailam diante dos meus olhos e criam lugares por onde passei, vivências dos outros, das quais me apropriei. Todas as estantes são mais do que um nome, um espaço ou uma pessoa. Até morrer (eu e a estante), a estante, porque os livros não morrem, ela abrirá caminhos, fará rotundas literárias e outros mundos ficcionados e literais até que se desintegre e se misture ao pó que é, ele próprio, parte do livro, bem como à sua insustentável leveza. O maior respeito e homenagem que se pode prestar, seja a um livro ou a um autor é ler. Ler o prefácio, o posfácio, o índice a capa e a contracapa, a biografia e a poesia impressas, a escolha da capa e a escolha das frases, das dedicatórias, o corpo do livro, apreciando a descrição das paisagens e pessoas que por lá desfilam, ouvindo com atenção as escadas quando rangem, os gritos sem bocas que ecoam por quartos com portas fechadas. E sentir nas entrelinhas o prelúdio musical e o interlúdio musicado da nossa vida ou da vida dos outros, ou da nossa e dos outros, ou ainda de vidas que se prendem a nós, ás quais podemos descobrir motivações e atalhos, ao cheiro das flores que se abrem quando viras uma página de Outono e ás metáforas que se jorram olhos adentro, definindo todo um percurso de leitura e de escrita influenciado por uma letra, uma qualquer palavra, uma incoerência ou algumas reticências que adensam a nossa curiosidade. Ler incentiva a ler. E ler acrescenta o que não está escrito e que pode ser, em última análise tudo o que não se ouviu dizer de um livro. A parceria com um livro pode ser um romance ou um thriller, depende do que precisas para espairecer. Se o filme e a vida te limitam, é ferramenta a que podes recorrer para intensificar a tua vida ou pura e simplesmente, para relaxares. E todos os livros deveriam ser prescritos para medicina e saúde, para arrelias e alergias, para promoção de tudo. E é isso que eu faço. Prescrevo-me a mim mesma de tudo. Que a lucidez me oriente enquanto por cá andar, o melhor ansiolítico é musicado com o patrocínio de um bom livro. Quando abro a boca e falo, saem letras compostas em palavras com distintas orações de algumas intenções e interjeições, mas quando um livro abre a boca, o mundo deve pausar. E ler. E para isso, bastam-te os olhos e uma vontade que se mistura à sede de saber mais. É a isto que obedeço e que agradeço à minha estante.

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