Poly & a pedofilia dentro da família

 




Apolónia era uma mulher quase nos cinquenta. Nascida em Angola, já nos finais da descolonização. Os pais tiveram que fugir da matança, sem bens nenhuns que pudessem chamar de seus, a não ser quatro malotes de roupas e ninharias. Ambos os progenitores tinham formação na banca e nas finanças, estes eram todos os seus pertences. Uma vontade férrea de sobreviver ao racismo, e, depois de terem regressado ao país natal com três filhos nascidos em Angola, era encontrar uma casa onde pudessem dar início do zero, à vida, alimentar os filhos e estabelecerem-se, na terra de onde um dia haviam partido em busca de melhor sorte. Apolónia era a do meio, dos irmãos e, foi-lhe difícil habituar-se à terra dos pais. Eram chamados de retornados, pelas costas, de uma forma pejorativa. Toda a sua família que ainda era extensa, viria a conhecer aos poucos. Apolónia era determinada, quando queria alguma coisa e, já em criança, apesar dos desafios, demonstrou sempre estar pronta para enfrentá-los. Foi vítima de bullying nas escolas, na família e um pouco por todo o lado. A que se devia? À crueldade, sem limites, dos seres humanos. Na verdade, Apolónia era, também, dona de uma péssima autoestima que não ajudava em nada a evitar os sofrimentos de que padeceu. Escusado será dizer que, aos progenitores, não lhes foi difícil voltarem a adaptar-se ao país que tinham abandonado, pelas seus ofícios e conhecimentos e, porque não abandonavam o posto por nada, mesmo por doença ou assistência inadiável à família. Os filhos podiam adoecer, mas os pais não largavam o trabalho, assim Poly, que era como era chamada na família era quem defendia a casa, pois o irmão mais velho tinha ido para Lisboa e o irmão mais novo era muito dependente ainda. Lembrava-se bem de ter batido em vários rapazes que tentavam agredir o irmão mais novo, mas não havia quem a defendesse a si mesma, senão a própria. O pai, com o seguimento dos anos, tornou-se num homem frustrado e alcoólico. A mãe amarga e fria. Assim, quando o pai que gostava de confraternizar com todos os estranhos, saía à noite, para beber, os três temiam o resultado das bebedeiras que ele trazia para casa e como lidariam com as mesmas. Se houvesse algo que a mãe considerasse estar errado, bastava dizer ao marido e este, de supetão, entrava pelo quarto dos filhos e mandava-os escolher a fivela do cinto com que iam apanhar, e apanhavam, até ele se esquecer o motivo ou até perder as forças. Assim, as sevícias começaram cedo. Bem cedo para ambos. Aos 15 anos ela decidiu ir viver com os avós, para o Minho. 

Sem que ninguém diagnosticasse, nem a baixa autoestima de Poly, nem a pedofilia radicada nos homens da família, Poly começou a ser abusada, primeiro pelo avô e logo depois, pelo tio. Colocavam-lhe o sexo na mão, mexiam-lhe nas partes íntimas do corpo, enfim, uma panóplia de manobras que só conhece quem é abusador ou quem foi vítima, ou ambos. 

Ela guardou muito tempo, fechados a sete chaves dentro de si, tais abusos e mais tarde confessou que tinham iniciado bem antes. Ainda na primeira infância, depois de ter voltado da colónia. 

Perguntei-lhe como deixava que a coisa prosseguisse, se bastava denunciar a situação ou fugir dela, voltando a viver na casa dos pais. Foram anos de terapia, múltiplas formas de abordagem. Tudo ia dar no mesmo. A confusão de Poly na duplicidade de sentimentos. Poly sentia culpa pelos abusadores e, ao mesmíssimo tempo, sentia vergonha e amor pelos abusadores, porque, de alguma forma, a procuravam. Porque gostavam dela. A sua culpa era pelo seu corpo sentir prazer naquelas abordagens. Não por ser motivo do desejo de dois doentes. Poly não sabia ainda que o seu corpo, muito embora estivesse conectado à cabeça, responderia de forma diferente da sua mente e do seu coração. Não importa o nome que damos aos diagnósticos, não importa o vocábulo que possa fazer corresponder o problema de Poly com a caixinha, que justificaria a sua forma de agir. Cabe aqui dizer que, quando não temos acompanhamento parental ou quando existe fragmentação emocional e física dos progenitores, as crianças são criadas ao Deus-Dará. 

O dilema que as crianças vivem em famílias (e não faz qualquer diferença reverenciar famílias nucleares ou das outras) com pais, filhos, papagaio e cachorro, porque as famílias convencionais produzem dores e cancros emocionais, bem como comportamentais abismais, tanto como as outras. Entender, antes de tudo que, enquanto este fenómeno não tiver um alcance sociológico eficaz, muitas Polys serão mulheres, terão filhos que ainda sentirão as consequências desta abstração social de sujeitar crianças pequenas aos abusos de quem quer que seja. As chamadas comissões de CPCJ, assim convencionadas por tal sigla, na grande maioria dos casos, perdem contacto com o núcleo dos abusos, deixando-se influenciar por uns e outros, sem sequer haver uma correta averiguação das situações em campo. As crianças são números processuais. Não é assim tudo, hoje?

A um nível de macro sistema, as Polys "produzidas" são mulheres, mães, irmãs, filhas, esposas, colegas de trabalho, cujo desempenho será sempre dependente de algumas nuances particulares. O álcool, o abuso, o continuar dos mesmos, favorecem Polys que sistematizaram em si mesmas que a culpa e a vergonha são veículos com os quais podem bem lidar a vida toda, porque, também são eles que ainda - pasme-se - continuam a trazer algum tipo de escapismo e prazer à vida dos abusados. Poly é uma mulher de muito trabalho, que é bem capaz de remar um navio numa tempestade sozinha. Mas não tem que estar sozinha, numa tempestade. Não tem que adormecer sossegada com um bafo de álcool na almofada ao lado, nem de lenço na mão, com receio que lhe introduzam uma qualquer genitália, comportamento iniciático a que a mesma justifica com gostarem de mim, ou porque mostram que se importam comigo. Hoje, Apolónia entende que o prazer dos familiares era a única coisa que lhes importava, mas ainda duvida, pela sua baixa autoestima que, seja possível que ambos lhe tivessem algum tipo de afeto positivo.  

Enquanto cada um de nós não se colocar no lugar da Poly, nunca será capaz de entender que este círculo vicioso condena todas as polys e todas as descendentes das polys a um enviesamento afetivo. E daí advêm todas as doenças psicossomáticas e de cariz mental e afetivo que todos nós conhecemos. 

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