Departure (abroad)

 



Sinto que estou de partida e não me perguntes sobre esse sentimento. Porque ele vem de dentro e dentro é a intuição e o conhecimento superior. 
E será uma partida apaziguada. Tanto tempo pedi por isto e eis-me aqui. Onde não cabe mais nenhum não. Já é tão tarde para mudar a linha. 
Não, não quero ir. Não já. Apetecia-me ficar mais um pouco. Esta sensação deixa-me inquieta. Houve alturas que pedi, mendiguei a partida, não importava o onde. Era uma partida com destino incógnito. Queria era partir para longe das pessoas e das coisas que me doíam internamente. Por isso te disse o que disse, que qualquer destino me serviria. Não suportava mais ver todas as carantonhas que me habituei a ver, inclusive a minha. Embora a minha não me incomodasse mais. Aliás, fiquei tão de bem comigo, desde que comecei a fechar portas, que comecei a dizer nãos, que comecei a ouvir o meu coração. Precisou passar uma vida, os meus cabelos compridos presos no velho rabo-de-cavalo e tudo o que me era confortável, ou íntimo ou meramente agradável, tudo o que me era útil e importante, como o chá tomado na varanda, enquanto observava os velhos pinheiros rugirem e os cães confirmarem que isto era a vida que se espera. Eu que não queria a vida que se espera, queria outra e tu bem sabes porque digo outra vida. Sempre os ouvi durante a noite, falando de inconveniências e eu que lido mal com isso, mas não, não eram as inconveniências que me habituei a ouvir, habituamo-nos a tudo, não, o que me incomodava era eles me incomodarem a mim. Porque me escolheram a mim? Ah, se ao menos tivesses resposta para esta minha pergunta, quem sabe, eu pedisse um adiamento. Foi uma vida a carregar esses chacais. E pesavam-me quando me deitava, exerciam um peso tal que acreditava em não ser capaz de erguer-me mais, tal era a brutalidade, e depois ignorando-me, porque eu era o objeto útil que lhes servia, como um canal de rádio, eles falavam e falavam em várias línguas. Foi difícil entendê-los, quando não falavam a minha. Primeiro estranhei, depois entranharam-se e, a par com o peso e o não fazerem caso de mim, o de me usarem como seu objeto, deixei de dar importância ao meu desconforto. Não fiz isso a vida toda comigo? Por isso, precisava de partir. Queria recuperar a minha vida, recuperar-me, encontrar-me, longe de todas as hienas humanas. E agora, que a chuva cai violentamente, que oiço pela janela as sirenes dos bombeiros e da polícia, agora que ameaçam destruir o mundo, agora que me habituei a não me ter, exceto nos dias em que me locomovo à varanda tomar o meu chá e ouvir os pinheiros rugir, agora que os cães me mantêm a audição da normalidade da vida costumeira a passar, me enviam sinais de que afinal, afinal, não vou poder ficar. Parece que precisam de mim longe, é tudo o que te posso dizer. Mas as hienas partiram. Já não me usam o corpo para pernoitarem em reunião, já não me sugam a energia, nem falam em dialetos, nem se penduram na minha coluna, de modo que não possa erguer-me. Não. Elas partiram, as visíveis e noturnas. Nesse aspeto, sinto a minha força voltar ao corpo. E mais do que isso, sinto que estou viva. Chegada aqui, a esta idade, mas que é a idade, quando o edifício que me sustém possui mais de duzentos anos, eis-me questionando o que me faria ficar, se ainda pudesse escolher. Foi-me dito: -já escolheste! E já, sei que sim, é-me vagamente familiar o acordo, o trato, mas não as cláusulas. Aliás, é-me tudo vago. Vago e familiar. Ontem, fui lá. Tentar ver se haveria mais algum elo escondido, junto ao banco. A desculpa era essa, tive que a inventar, para que me permitisse lá ir. Não havia nada. Apenas a vontade de ir visitar o meu amante. E fui. E vez nenhuma lá vou, sem me ajoelhar a Deus, agradecendo toda a beleza que criou, todas as preia-mar e todas as gaivotas. Os musgos e sargaços flutuando na margem. O cheiro da maresia a embriagar-me e a recordar-me de alguém que indagava a Ele, ao todo-poderoso, há muitos anos atrás, mas quem havia colocado tamanhas rochas no meio do mar!? Como teriam enchido aquela bacia tamanha? quantos homens teriam sido necessários para carregar tais volumes de água. Tu sabes. E as dunas estão mais finas, mais altas, os chorões púrpura e rosa deambulam com o vento a rasgar-lhes a quietude, os rebentos nas ondas enfurecidos contra as rochas, as boias laranjas subiam intensas e o mar brutal se espumava de ira. Esse espetáculo não o quis perder, sempre choro quando espreito Poseidon e me encolho ao imaginar os grandes petroleiros a virarem barquinhos na tempestade. 
Talvez só o mar me apaixonasse a ponto de pedir para ficar. Nem sei se, para onde vou, tem mar. Ainda não sei. Estou neste velho casaco gasto, como eu, pendurada no suprimir das horas, aguardando a entrada no portal. Desta vez, quando me chamares, quando ouvires o som da tua voz a chamar o meu nome, sentirás nostalgia. Só te posso dizer isso. Porque metade de mim já cá não está, quando vieres recolher a chávena e limpar os cinzeiros e fechares as portadas e as janelas e atirares lençóis brancos para cima das poltronas e camas onde me deitei, sentirás o perfume familiar da hortelã, assim que atires no ar esses tecidos de cambraia nas camas onde me deitei com os gatos nestes anos, onde se penduraram em mim e me usaram como se eu não passasse de um destroço de tempestade, um pedaço de madeira velha e molhada, onde se podem tentar salvar ainda os náufragos, dos umbrais recuo seca. Desta vez, o meu caminho será a subir, como o dos alpinistas, sem necessidade de cordas, apenas a luz da manhã a erguer-me de regresso. Quando vieres, põe água nos pires, debaixo da varanda. Não quero que animal nenhum morra de sede. E aguarda notícias minhas. Terei, certamente, muito a dizer-te sobre a Primavera. 


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