Enigma



Enquanto a vida se desenha um Carnaval, um enigma original dorme em ti. És como um viajante anónimo na cápsula do tempo. Recorrendo à analogia da cebola ou da matrioska, vais despindo as camadas, mas esse nunca foste tu. Tu estás dentro. Salvaguardado de danos. A natureza preserva, para o bem e para o mal.
Diria que há, sempre, um medo de despir a máscara que nos segurou em tempo incerto, num lugar impróprio. 
Só quando nos atrevemos a despir as camadas que precisamos vestir para encarar as desilusões fabricadas pelo ego, só quando nos enfrentamos no espelho de quem fomos, sentimos a nostalgia e a saudade, não a saudade daquele e do outro, não, sentimos saudade de nós, do nosso self original que era brilhante e entregue, generoso e genuíno. A ideia que temos, neste confrontar é o de que passou uma eternidade. Habituamo-nos às máscaras. Deus, como é difícil arrancá-las e observá-las, como elas são. Pedaços de outros que inventamos para nos protegermos. E nessa altura, damos conta que nunca estivemos ali, verdadeiramente. Apesar do desespero, das incongruências e do próprio resultado que veio com a máscara que tive que inventar para viver ali. Comigo, com esse outro lado de mim que é ilusório, que não me satisfaz e nem me faz feliz. 
E a felicidade vem sempre com um voltar para dentro, um perscrutar interno, uma indagação e um desconforto combinados numa noite escura e comprida, a noite longa da alma. Depois, bem, depois há muitos senãos e muitos cenários. Receamos a todos, que, de alguma forma, demos poder. Somos pássaros que caminham nesta terra, encardidos de pele de lobo, um personagem alheio de nós mesmos, mas que, por muitas razões, nos segurou até ao limite do nosso desapontamento. Ele chega, sem avisar, num determinado dia que pode ser de frio ou de calor, pode ser ameno, o dia, mas nunca a sensação de impropriedade. Essa nunca será amena. Temperada de equilíbrio. Olhamos nos olhos a nossa imagem e sabemos que é falsa. A verdadeira, a segunda pele está preservada, noutro tempo, quiçá noutro espaço, onde deixamos de pisar. Procuramos no escuro, através de quês de outrora que a nossa memória guarda, que o tempo guarda, calcetado na forma original. Ainda estamos ali, o corpo etéreo dos nossos afetos, a ilha intocada que recusamos olhar. Um dia, chegados ali, damos conta que vivemos como náufragos, estranhos de nós mesmos e que o nosso bem está reservado noutra península. Apelamos ao nosso bom senso, ao nosso arsenal construído de estratégias de coping, os nossos recursos de sobrevivência, elaborados dos acessos inteligentes e mutáveis, tentamos agarrar-nos a tudo como se fôssemos perder o pé da nossa falsa segurança. E, diz quem sabe, que nesse intervalo, entre o caminhar à noite escura e o deslumbrar de uma aurora inesperada, nesse breve espaço em que és parcialmente quem construíste, a máscara da agonia e o outro, que é quem realmente és, originalmente, que encontras o caminho de regresso a casa, ou, porventura, tentas apagar, porque escolhes a segurança de quem construíste, a ilusão aparente dos polos. E há quem tenha medo e escolha a manutenção dessas camadas, sob pânico de se perder. Mas também há quem decida, com dor, mas com resiliência, regressar a si mesmo, ao seu poder intocado, inicial e se prepare para uma regeneração. E pode ser tardia, demorada, pensada, elaborada com requintes de detalhe e de pureza, ou pode acontecer, como uma tempestade sem aviso prévio. De todas as formas, é um regressar à inocência, mesmo que feches a porta e a tranques para nunca mais olhar para ela. Quando te encontras, entendes o processo e escolhes. Essa escolha é um caminho ponderado, és tu contra ti mesmo, e a fruta retoma o sabor próprio do início dos tempos. Este sou eu, afinal. Quando decides por ti, o mundo perde importância e tu, finalmente, exponencias com propriedade o teu self, sem sequer quereres saber o que pensa o mundo disso. O mundo passa a um lugar secundário, os outros são secundários porque te dás propriedade a ti. O mundo beneficia dessa escolha, porque voltas a ele na tua forma absoluta e é, a partir dela, que dás conta que é sempre tempo, há sempre tempo de seres tu. Porque o tempo é um recurso estilístico que contornas. Os rios são originais, o mar, as florestas, os caminhos, as estações, os frutos e os pensamentos. O espelho devolve-te o teu eu e sentes-te, finalmente, em casa. A idade dos frutos maduros é sempre um retorno de saturno pelo caminho da tua infância e, adiar esse regresso é sempre possível, mas nem sempre a tua alma o concebe. O propósito está lá, dentro dessa cápsula que ninguém conhece, a não ser tu, quando te atreves a te priorizar. Depois de o fazeres, jamais voltarás ao formato anterior. A expansão inicia e a viagem promete. Não te castres, não pares, obedece ao chamado interior. Ele te conduzirá de regresso a casa. 


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