Cada vez há mais vento







li há pouco num magazine de letras que quem não vive com amor, não dura muito; venho insurgir-me contra tal depoimento, eu que já morri mil vezes e continuo a viver a dor da vida que não passa porque já durei tempo demais e não me expiro, nem tu quando me chegaste, me mostraste prazo de validade; 

então, a vida não passou depois de ti, não, o que passou foi o tempo, com as suas voltas, pessoas e estranhos acontecimentos, bizarrias, torturas e futilidades, que a vida não passou depois de ti ou eu me lembraria! O que passou foi o vento e a chuva, a primavera sem flores, eu na vida dos outros, e a minha vida na vida deles, às vezes no peito deles, às vezes soavam familiares, na sua maioria, estranhos e famintos de sonhos, de pistas para estacionarem corpos que não me pertenciam, que nunca quis.

eu longe de casa, da minha habitação onde havia o teu cheiro, os teus braços, até a tua sombra tinha mais corpo e mais cor do que a vida, até quando te atrasavas, o teu sorriso era a minha companhia, mesmo quando fechava os olhos, mantinha-se a ancorar-me. E permaneceu fiel, mais do que tu, ele ficou. 

e tu partiste e nunca chegaste, um homem esquecido do endereço da sua casa, e o verão sem mar e o jardim sem flores, e por imitação, eu quis esquecer-me e sorria, e por dentro sangrava, mas eu sorria quando era tempo de sorrir e chovia quando era tempo de chorar, sempre fui boa militante e sempre me obriguei a ser congruente; achas que me fica bem esse adjetivo? mais do que o de ser feliz? sempre soube que foi uma troca injusta, e todos os que habitavam o meu país, ao teu lado, desapareceram contigo, e nunca mais os vi, no comboio que me arrastou pelas estações do tempo, a ponto de eu crer que te tinha inventado, a ti e a eles, e com uma tal riqueza de pormenores que ainda doía teres fechado a porta, ainda doía teres-me roubado tudo, todos os sonhos que só queria contigo.

sabes? desisti de tudo, mas comecei por mim, logo ali, naquela casa onde estaríamos ainda, se eu não tivesse aberto a porta para aquela tempestade que te arrancou, e tu não és uma árvore, podias ter voltado atrás, eu ter-te ia aberto a porta, eu era a tua casa;

aos meus amigos que não se foram contigo, uns adormeceram cedo, como num comboio que leva todas as janelas abertas de um final de sábado, vagões cheios de expectativas e vazios de gente que, absorta, deixa os sonhos sumirem, desiste deles como se abdicasse somente de um dia, acreditando poder sonhá-los adiante, noutros dias; esfumaram-se janela fora, não sei realmente se estavam cansados da vida, outros, foram adormecendo como se um estranho metal gasoso os envenenasse por dentro e lhes mirrasse o sangue e os entorpecesse de amnésia e os fizesse acordar dentro de um pesadelo que não era seu, tal como me aconteceu; 

e tu noutro lugar, noutra estação, sem saberes, preso dentro do peito, na glote, quando me atrevia a lembrar o som do teu nome na boca e repeti-o tantas vezes, tantas como ao meu pai, quando ele me morreu sem avisar, e eu acreditei que fosse arrepender-se e voltar atrás para dizer: - filha, dá-me um beijinho, eu volto noutra vida!; 

eu entrei nesses vagões depois que te vi partir, por isso te afirmo que a vida não passou depois de ti, passaram os anos, os meses, as semanas, os dias, as horas, os minutos e os segundos, o que passou foi o bater do coração no meu peito, o volume do teu peito também passou, as saudades hoje são ondas severas e tsunâmicas, rebentando tudo e tomando conta de quartos dentro de mim que nem eu conhecia, o negrume ficou, o pesadelo espesso e permanente como o de uma sentença vitalícia, e passaram as estações e os apeadeiros, as palavras torpes e grosseiras, as cambalhotas,  as confusões, os enganos, as ilusões e nos meus braços que acompanharam o adeus que a minha mão nunca desenhou, as saudades ficaram como o sulco de água da chuva no deserto, de tudo ter passado por mim, tudo ter desistido, tudo ter rebentado em mil diques, um titanic em mil pedaços, e tu agarrado ao porão dos meus olhos, continuas a não te afogar, submerges para voltares de seguida, chamar-me nas minhas noites longas e gritares um adeus que nunca ouvi na tua boca!

tudo se esfumou, tudo implodiu, menos tu que resististe estoicamente e não passaste e és ainda um sopro de vida que carrego nos olhos e que, eles que às vezes desistem das janelas, e outras vezes ainda se atrevem a espreitar sem nunca ver chegar quem partiu sem regresso; os cortinados ondulam, mas eu finalmente, sem hipocrisia nenhuma, desisto de olhar o seu ondulado, porque já desisti dos cortinados, das janelas, das portas, das casas e dos países onde o verão deixou de vir com mar, com o marulhar das ondas, com céus grafitados de aviões e noites carregadas de estrelas e os teus cabelos em ondas serem a última imagem antes de apagar a luz;

dou-me conta agora que devo ter sido desviada para a vida de outros, através de sonhos e pesadelos que foram acontecendo, gestações e visões sem retrocesso e que hoje, sendo honesta, não me dizem nada, apenas lições que guardo num dos recantos da biblioteca, lá não há troféus, apenas arpões, cicatrizes, marcas e manchas de abandono e displicência, não sobrou nada porque nunca chegou a ser tudo e, metades, só metades são insignificantes; um homem quer-se inteiro, com infância e tudo, com passado e futuro, com dores e com sorrisos, não podem ser só meios, mas porque nunca chegam ao fim, e uma alma como eu não podia ter-se permitido o engano, porque não podemos substituir o amor, por ele ser eterno e só podemos voltar a tentar depois de nos certificarmos que ele partiu e tu nunca partiste, quando o teu corpo se foi embora;

porque mesmo fantasma continuas a ser o ser mais vivo e mais autêntico que guardo cá dentro e que, por mais tentativas que faça, não te sei matar, não por não tentar, mas talvez me falte aprender o truque, o maior, sobre a arte de desamar.

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