Estranho descendente de Psychosis
Talvez se possa viver numa nação remendada de galardões e fracassos, traições e sonhos que adormecem. Talvez. E talvez se possam carregar mortos nas costas, em nome de uma solidão poderosa, mais poderosa que o amor. Acredito que se façam milhentas concessões e condescendências em nome do que nos vai unindo, a nós, humanos. A fragilidade. E eis-nos chegados a esse vasto universo de sensibilidades e suscetibilidades, aos dois pesos e duas medidas, do que nos arrasta e motiva ao que se nos esconde e inferniza. As dualidades sempre presentes, também no país das desculpas. Um campo de possibilidades, onde esgrimimos, por hábito, vários touchés ao nosso egozinho de estimação, ora em vantagem ora em desvantagem, face ao outro. E essoutro pode tornar-se um estranho. Ou antes, um estrangeiro. Que um estranho pode falar a mesma língua, usar as mesmas fraseologias, participar no que é mistério dos outros. Um estrangeiro não. Tem uma forma distinta de ser, uma sintaxe e morfologia próprias da língua que domina - que não dominamos. O meu domínio de línguas estrangeiras podia salvar-nos...
E sinto que há mais países no mundo do que possibilidades dos teus e os meus sonhos juntos terem vingado. O outro já não é o mistério que dorme connosco e nos desafia, mas antes uma espécie de enseada linguística onde sabemos perder o pé e nos sentimos arrastados para limbos afetivos, neste tão imenso deserto de afetos.
Por princípio, nesses países estrangeiros, tendo a ouvir os nativos do idioma. A tentar buscar significados e significantes, a compará-los a relativizá-los, a diminuir e/ou extrapolar a carga real ou ignorante. Quando nascemos com tendências para a intercomunicação e agimos nesse propósito, a linguagem deixa de ser apenas um veículo de chegada e acesso, mas arranja-se ela própria paixão. E é quando temos ventos e marés e paciências a favor. Exceto quando o idioma é exclusivo de um só vulto estrangeiro, que houvera criado uma nação só sua, isolado como qualquer ilha que se preze, avesso a qualquer outra interação, que não seja a do mar.
O nosso casamento veio a amadurecer fruto deste nome, estranho estrangeiro, onde habitas só tu e me deixas à margem. País de um só homem, criador da sua linguagem, cuidador dos seus interesses, exclusivista e exclusiva(dor) das vontades alheias dos que se cruzam em mar alto e te avistam. Pudesse ser fácil recorrer de artilharias do tipo dicionário de bolso, esquemas linguísticos e mapas neuronais para desbloquear acessos, pra in solver essa nação única de ti.
Recorro, ainda assim, a passwords, todas erradas, usadas com fins últimos e princípios egocêntricos baseados em ti, de ti, para ti, onde chavões de controle medem ausências e beijos como se fossem pássaros abatidos no ar pela ira.
Quem és, do que conheci? Sinto que não moras mais aí, metamorfoseado, "esquizofrenizando" os afetos e racionalidades, obedecendo a uma lógica "alucinativa" e esquemática. Um país sem maiorias e sem minorias, um caos ordenado por conceitos de alicerce na prisão, na liderança, na hostilização e submissão dos outros pra um bem maior e comum: tu. Emendo o caos para: uma ordem caótica, de que te tornaste edifício. Imperam leis, regras, deduções e análises, normas e missivas, declarações e condenações, todas perfeitamente reguladas, calibradas ao pormenor. Ordens de serviço para os que se te cruzam, esporadicamente. Gostas de chamar a todas as imposições divergências, pontos de vista, sugestões, meu caro senhor. Quão caridoso...
O amor, esse grande vocábulo, que enfeitas e queres enfeitado de estrelas e abraços, de corações e lugares-comuns não encaixa na expressão física e psicológica dos afetos reais, tornando-se ele um vocábulo autista, à tua medida. E é sempre em nome dele que verborreias as condições meteorológicas da nossa relação (amanhã vai ventar se não dançares ao som da minha música, se não "choveres" humidade relativa, bah), o extrato das nossas relações carnais, o saldo negativo dos meus sorrisos ou das tuas explosões de fúria que podem derreter os polos. São inaceitáveis, dejeções menos próprias e dignas de serem usadas em nome do amor, mas meu não-amor, não és novidade nesse aspeto, todos os grandes líderes mundiais de grandes nações usam a palavra guerra pra "garantirem", dizem eles e tu, a paz.
Vejo-nos chegados ao limite - tantas vezes no limite - a este abismo de sentidos e eu, continuo à procura da pessoa que te dizias melhor, pelo meu amor. Que te tornei melhor pessoa. Tão boa pessoa que desapareceste, que ironia - vestia camisa creme e jeans esbranquiçado, calçava tennis pra correr mais - e devo, se calhar, procurar-te na secção de perdidos e achados da cozinha que te faz sentir mais deus da tua omnipotência. Não há nada que regule a intensidade do amor - o amor físico é químico, my dear - mas há termómetros que medem a raiva, a exaustão, a descrença e o vazio e esses instrumentos, meu querido, vou precisando deles todos os dias pra apaziguar-nos de memórias que mantenho selecionadas - só as boas, rapariga, só as boas - que as más entrarão frequentemente, sem necessidade minha de as guardar em vão. Duelar, discutir, esgrimir são ações frequentes, bem conhecidas na nossa casa. Quem somos hoje e como chegamos aqui? Dois estrangeiros esbarrados, habitando um elo comum. Que mal te pergunte:
- Onde está esse elo que nos uniu?
Em nome dele, construímos uma péssima habitação. O presente, envenenado. E diante de mim, vejo-nos num futuro esdruxulo e paranoide. Como driblar a vida, este barco, sabendo que a possessividade e o egocentrismo, a neurose das tuas carências recorrentes, vai destruindo todos os dias a confiança e carinho com que eu muito-bem-te-quis?
Se a pergunta te fosse dirigida na espera de uma resposta, dirias:
- Nina, o tempo remediará tudo!
Não procuro respostas em ti mas em mim. O que faço comigo? Deixo-me arrastar nas grilhetas do teu comodismo, acuada no meu silêncio de cansaço, pelo teu apreço excessivo a coisas sem a menor importância?
Não há forma de saber onde me esgotei, mas o limite é um teto que se arrasta pra longe dos alicerces. Até os autistas sabem - não quando, mas - que limite é mais do que palavra de pressão ou ultimatum. E um dia, o tribunal vem retificar tudo. Dos escombros desse edifício onde deixei de morar.
In Free as a bird
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