Hail True Body

 


Ave Verum Corpus


Nunca tinha percebido da vida. Nem nunca ninguém lhe tinha explicado como era, como funcionava, de que forma se conseguia sobreviver aos dias e às noites, como se lutava por aquilo que se queria, se se podia querer qualquer coisa ou se havia algo certo e preparado para si. A questão era existencial. Filosófica. Intestinal. Porque tudo resultava em merda. Comíamos para cagar, bebíamos para mijar, que proveito havia em acordar todos os dias para voltar a dormir, de que rotinas podia escapar, quais se permitia aceitar como partes integrantes da vida. Ele olhava para as mulheres de uma forma inquisidora. Todas as mulheres que conhecia eram fracas ou feias. Exigentes ou permissivas, fracas, portanto. Tinha medo dos homens. Os homens eram fortes, mas maus para os seus semelhantes, para as mulheres, para os filhos e atrever-se ia a extrapolar a questão, os homens eram maus, sobretudo 'para os filhos. Ele já tinha lido Freud, Jung, os pos-jungianos e, se às vezes entendia e assimilava os conceitos, outras, não os encaixava nos conteúdos da sua vida. Sofrera de bullying toda a vida. Toda a vida comprida e nada romantizada. Toda a vida lhe tinham tentado roubar alguma coisa. A mais importante foi a esperança. Roubaram-lha e nem sequer lhe pediram desculpa. Foi abusado consecutivamente, sem dó nem piedade, por uns sexualmente, por outros agressivamente, como se na testa lhe sobrasse a parangona: Fodam-me! Nasci para Cristo! A ironia da vida que brincava de roda dos seus ouvidos e olhos e que lhe vinha a mostrar que as atitudes ganham os fortes, mas também os fracos. Um homem pode falar muita coisa, mas só o deve fazer se estiver, realmente pronto, para tomar uma atitude concordante perante o seu discurso. A bota tem que bater com a perdigota. Não era - oh rapaz, faz essa merda, eu também faço! Porém, eu nunca o vi fazer, senão dar-me porrada, galhetas, aquele cinto a esgaçar-me a pele branca e vermelha, seviciada pela bravura da virilidade dele. E dos outros. Quão fácil era castigar os outros mais fracos pelas nossas frustrações. E eu seguia lendo. E não era ao meu pai que eu imitava, o meu pai lia, mas eram manuais de fotografia. E livros de história. Que, faça-se a ressalva, eu adoro. Eu lia muito de tudo, até o rótulo das latas de salsichas. Já viajei muito nos livros, para fugir ao sofrimento que trago entre sinapses. Tanto que nunca me acreditariam se desfiasse aqui o rosário. 

E ele até queria desfiar o rosário, mas era insuportável fazê-lo pois obrigava-o a revisitar todos os sítios por onde andara, todas as fugas, todas as mentiras, os roubos, os fingimentos e, sobretudo o roubo de identidade de outros que ele nem conhecia. Olhava as pessoas e tirava-lhes um scanner, uma foto mental, bonita, sempre bonita, aquela pessoa é assim, faz assado, dorme cozido e acorda molhado. Claro que nunca ia confirmar. Eram só estranhos e aquele exercício era viciante e útil. E era assim que se ia conhecendo, assumindo atitudes, copiando formas de ser ou estar com os quais, de identificação, só existia a sua vontade intrínseca. Aquele ser inútil para a sociedade havia de transformar-se, ainda, no senhor de tal, no ilustre marialva, no evidentemente viril homem do leme, quiçá, da vida dos outros. E enquanto tal não acontecia, aprimorava-lhes os gestos, estudava, com detalhes de volúpia, as suas criações. Não tinha vindo ao mundo para ser um castrador, frustrado como o pai, ai ninas não, como o pai, não! Recusava-se.

Às vezes, lá coincidia sair com o pai, já adulto e estudava secretamente os seus maneirismos e, mais tarde, longe da figura, que ainda lhe tinha pavor, copiava com extrema fidelidade a postura, o que lhe agradava nele, mas ser como ele isso é que não! Enganara muitas pessoas, sobretudo mulheres. Perdão, sobretudo a si mesmo. Mas descobrira, tardiamente, que a si próprio não o conseguira fazer. Iludiu-se. Foi o que foi. Um gajo vem ao mundo sem nem saber o que lhe calha na rifa. A ele calhou-lhe um pai imundo, podre, uma família de paz podre, uma aniquilação e uma fuga viciosa de todos os elementos. Todos fugiram, de alguma forma. Para não se confrontarem no espelho íntimo do criado de quarto. Este não sou eu, para não ser um filho da paupérrima senhora minha mãe, para nunca me aproximar, sequer do excelentíssimo senhor com quem ela acasalou e me fez, hei-de ser outro, hei-de sair a mim, conceber-me a mim próprio, que como diz o outro é foder-se a si mesmo! Ora nem mais! Ia-se foder com toda a razão, era o que os outros tinham passado a vida a fazer-lhe, foderam-no tanto, que olhar a merda de um espelho era mais que fodido. Era impossível. 

Eu iludia-me a mim mesmo. E conseguia. Juro! que fique cego e caia redondo, se não é verdade! Mas a merda do espelho, nem pó, olhava de longe, a silhueta! Que um homem de longe tem porte e silhueta bem conseguida, bem arquitetada, é só um gajo querer! E Deus sabe que eu queria. Sabe Deus e sabe o Diabo, esse vil e ocioso que sempre me perseguiu.  

Vinha da escola, eu era um ganapo, meio quilo de ossos e praí uns trinta de peso de roupa, que eu vestia para que nem se atrevessem a despir-me, mas não adiantava porra nenhuma. Despiam-me à mesma, dentro daquele salão! A primeira vez foi duro, não posso negar, a segunda, a terceira e se calhar a quarta, porra! é duro ser humilhado, é duro chupar um pau e fingir que não se tem medo! Tem-se medo, porra! Porque não se havia de ter medo de matulões que nos usam, a nós, enquanto somos ganapos, para se esporrarem na nossa boca? Na verdade, nunca conheci mais ninguém e nem nunca vi mais ninguém que tivesse sido abusado como eu, e aquele bairro era a gaita de uma cidade, enorme, cheio de matulões e de matrioskas. Fui abusado, fui humilhado e preparei-me sempre para o meu dia de sorte. O dia em que nem ousassem me tocar! Havia de ser tão forte que lhes partia as pernas todas! Dava cabo deles. E foi por isso que fui para o desporto. Para ganhar corpo! Precisava de ser respeitado, o raio que os foda, se não havia de conseguir! E consegui. Hoje peso mais de cem quilos, se me perguntares quantas peças tenho no corpo, digo-te já, três, seja verão ou inverno, quando muito visto um casaco, mas a mim não me metem mais medo. Enfio-lhes um soco no focinho que nem piam e se insistirem, faço-lhes uma cova no quintal do Júlio, a ver se me respeitam ou não!

Nunca consegui ser corajoso, valente. Sou mentiroso compulsivo, digo as coisas de determinada maneira para que os outros vejam tal qual eu pretendo, sou manipulador ao extremo, já fui muito manipulado, conheço todas as regras e todos os boicotes, todas as virtudes e fraquezas do ser humano. E querem saber? Se não os podes vencer, podes sempre juntar-te a eles, afinal a merda da união faz a força e o cooperativismo precede e cresce nas sociedades humanas. Não, não me vou desculpar com tangas! Eu sou quem sou e isso faz de mim um conhecedor de gente de toda a espécie, mas não pensem vocês que de mim levam o melhor. Vocês estão a vir e eu já fui! É tal e qual! Requintes de malvadez é comigo, pá! Oferta do papá. Senta aqui no colinho, chavalo, quero contar-te uma história e, se ele se põe a jeito, vou lhe contar a mesma história que me contaram a mim, e, que agora, pensando bem, contaram, com certeza, ao fraco do meu pai, porque descobri anos depois, debaixo da cama dele, os livros que ele nunca leu abertamente em família. Os manuais de pedofilia com que batia umas punhetas. E digo-vos que se vós não aprendeis a ler os outros, ireis aprender da pior maneira. Visito os meus amigos, tenho alguns, um gajo tem sempre que ter amigos, pode não ter mulher, mas amigos, ohoh, tem que ter sempre, jantaradas, petiscadas, futebóis e outros que tais. Para isso se faz um homem, para levar no lombo feridas que já vêm dos ancestrais, aposto que eles também foram seviciados. Os meus amigos têm filhos. Às vezes, lá me vai a cabeça para aquele lugar onde aprendi a tirar prazer na humilhação e em humilhar. Será que houve algum que eu pudesse ter orgulho em imitar? Matei três pessoas. Nunca vou cumprir pena porque a minha pena é esta, de viver dentro de mim e me odiar e fingir uma dor, como diz o poeta Fernando Pessoa, para ocultar a dor que deveras sente. Gajo grande. Um gajo não é de ferro, tem que fingir que a dor que carrega é a da humanidade, não a minha. Que eu sou impoluto. Isso é sagradinho. Ponho-me a pensar se o poeta não terá sido, também ele, seviciado. Eu, por exemplo, também fui acólito e lá nas igrejas, estas coisas passam-se às resmas. Podem ter a certeza de que onde se fazem mais gajos como eu é lá e nos internatos! E onde quer que haja um abusador, haverá sempre um abusado que, me diz a experiência, ou sofre como um cão, a dor psicológica da negação, da rejeição ou abusará, para aliviar o sofrimento de que foi vítima e, em último caso, só assim obterá prazer. A vida é fodida, meus caros! Os bibis são mais que as mães.

Hoje, 17 de Outubro de 2008 tenho uma consulta num psicólogo. Já tenho mais ou menos preparadas as perguntas, ele pode ter o guião mecânico do que me vai perguntar, mas eu que não sou otário nenhum e já vivi muito, quero ver como vai ele lidar com o role de perguntas que lhe vou fazer, depois de lhe contar o sumário da minha vida. Até quero ver como ele vai lidar com o lixo que lá vou depositar. Será que o psicólogo não vai precisar de psicólogo?


Comentários

Mensagens populares